sábado, 17 de maio de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 7


Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 7

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Ester  -  Gloria Menezes
Das Dores  -  Ruth de Souza
Lucas Pé-na-Cova  -  Antonio Pitanga
Mestre Jonas  -  Gilberto Martinho
Rosa  -  Ana Ariel
Inês  -  Betty Faria
Daniel  -  Paulo Araújo
Júlia  -  Ida Gomes

CENA 1 – ALDEIA DE MINEIROS  -  EXTERIOR  -  DIA.

ERA MANHÃ ALTA QUANDO O CARRO MODERNO, AZUL-METÁLICO, ENTROU, EM MARCHA REDUZIDA, NA RUA PRINCIPAL DA ALDEIA DOS MINEIROS, NA PERIFERIA DE FLORIANÓPOLIS. O MOTORISTA DIRIGIA CUIDADOSAMENTE, EVITANDO NA MEDIDA DO POSSÍVEL OS TRECHOS MAIS ESBURACADOS. DE UM LADO E OUTRO, CASEBRES MISERÁVEIS. JÚLIA APONTOU, COM EXCITAÇÃO, UMA CHOUPANA DE BARRO BATIDO. O CARRO ESTACOU, COM LEVE DERRAPAGEM.

JÚLIA  -  (dirigindo-se a Ester, sentada a seu lado na parte de trás do carro) É aqui... Mas... eu continuo achando uma loucura a senhora se arriscar assim.

ESTER  -  (olhando o casebre) Eu não acho (e desceu do automóvel, ajeitando o lenço que lhe envolvia os cabelos) Já volto.

CORTA PARA:

CENA 2  -  ALDEIA DOS MINEIROS  -  CASA DE DAS DORES  -  INTERIOR  -  DIA.

NO INTERIOR, TUDO MUITO POBRE: MESA TOSCA, BANCOS DE PERNAS GASTAS, APENAS UMA CAMA DE COLCHÃO RÔTO, UM FOGAREIRO DE BRASAS E ALGUMAS LATAS QUE SERVIAM DE PANELAS.

ESTER  -  (saudou a negra que correu a atendê-la) Bom dia! A senhora é parenta de “seu” Gabriel, que foi jardineiro na casa do Sr. Otto Muller?

DAS DORES  -  Sou sim. Ele era meu irmão.

ESTER  -  (retirou da bolsa um maço de notas novas) Eu quero que saiba que estou revoltada com o que fizeram com ele. E como não tenho outro modo de ajudar vocês, peço que aceitem meu auxílio.

DAS DORES  -  (recebeu o dinheiro, assustada ao ver o “bolo” de notas) Mas, é muito dinheiro, dona! Eu não posso aceitar assim... quem é a senhora?

ESTER  -  Não importa quem eu seja. Conheci “seu” Gabriel, era um homem bom.

PÉ-NA-COVA  -       (entrou na choupana, repentinamente) Das Dores, não sei o que tá acontecendo... tem um moço aí querendo falá com alguém da família de Gabrié.

ESTER  -  (voltou-se para a negra) Por favor, não quero ser vista.

ANTES QUE AS DUAS MULHERES PUDESSEM RETIRAR-SE PELA PORTA DOS FUNDOS, CYRO VALDEZ PENETROU NO CASEBRE.

PÉ-NA-COVA  -  É esse o moço.

CYRO  -  Bom dia... Bom dia, minha senhora. Acho que nos conhecemos.

ESTER  -  (respondeu com firmeza, tentando ocultar o choque) Eu acho que o senhor está enganado.

CYRO  -  (insistiu) Nunca nos vimos?

ESTER  -  (mentiu, as mãos trêmulas) Nunca. Nem aqui nem em parte alguma.

CYRO  -  No hospital... depois da operação do comendador.

ESTER  -  Eu acho que o senhor me está confundindo com outra pessoa. Bom dia!

SEM SE IMPORTAR COM A SAÍDA INEXPLICÁVEL, ESTER DESPEDIU-SE DA JOVEM NEGRA E SAIU.

DAS DORES MOSTROU O DINHEIRO, AINDA INCRÉDULA, AO COMPANHEIRO DE ALDEIA.

PÉ-NA-COVA  -  (assobiou, extático) Nossa mãe! Que dinheirama! A trôco de quê?

DAS DORES  -  Ela falou no Bié... disse que queria ajudá a gente!

PÉ-NA-COVA  -  (dirigiu-se a Cyro) O senhô também queria falá com uma pessoa da família de Gabrié. Das Dores era irmã dele.

CYRO  -  (sem meias palavras) Eu assisti ele ser morto.

O CASAL DE FAVELADOS ARREGALOU OS OLHOS, NUMA EXPRESSÃO DE ESPANTO.

DAS DORES  -  (chocada, procurou um banco para sentar-se) O senhor!

CYRO  -  Ia passando quando vi dois homens, dois brutamontes, espancando alguém. Gritei, protestei... mas não pude fazer nada. Ele já estava morto. Eu nunca imaginei que um dia viesse a presenciar  uma cena de tamanha covardia. Desde aquela noite não consigo esquecer o que vi. Tinha mesmo um peso na consciência, não sei por quê. Era  como se, por ter presenciado, eu me sentisse cúmplice. Precisava vir aqui, dizer isso a vocês.

PÉ-NA-COVA  -  A gente agradece. É difícil encontrar gente assim como o senhor e essa moça.

CYRO  -  (puxou um cartão do bolso externo do paletó) Eu me chamo Cyro Valdez. Sou médico. Não moro aqui, moro na Inglaterra. Devo ficar mais uns dias, somente. Em todo caso, se precisarem de mim, durante esses dias, estou no Hotel Central, em Florianópolis.

DAS DORES  -  Obrigada, doutô. O sinhô sabe, pobre nunca tá bom da saúde, mas com a graça de Deus, nenhum de nós tem nada de grave. Só aí o Luca, que tem uma tosse que vive consumindo ele...

PÉ-NA-COVA  -  (sorriu, sem graça) É tosse de mineiro, mulhé. Todo mundo tem.

CYRO  -  Mas é preciso tratar. Tirar uma radiografia dos pulmões. O trabalho nas minas é muito duro. Deve afetar os pulmões e o coração também.

DAS DORES  -  O senhô não é daqui, por isso tá estranhando. Danié, filho do Mestre Jonas, tá com menos de trinta anos e acho que não dura uma semana.

CYRO  -  (interessado) Mestre Jonas! Quem é esse Mestre Jonas? É um pescador de Porto Azul?

PÉ-NA-COVA  -  Esse mesmo. O filho dele é mineiro, trabalhamo na mesma turma, em Novo Mundo. Já desmaiou duas vez lá embaixo.

CYRO  -  Engraçado... esse Mestre Jonas foi procurar-me... ele parece que não regula muito bem...

DAS DORES  -  (reagiu) Mestre Jonas! Sei disso não. É um home até muito ajuizado.

PÉ-NA-COVA  -  E muito instruído. Foi marinheiro quando era moço... viajou, correu um pedaço do mundo, sabe das coisas.

CYRO  -  Mora na Praia Bonita?

DAS DORES  -  Isso mesmo.

CYRO  -  (atônito) Não é desequilibrado?!

PÉ-NA-COVA  -  Coisa nenhuma. Mestre Jonas tem o juízo mais assentado que nós todo junto.

CYRO  -  (balbuciou) E o filho dele está muito doente... Muito doente...

CORTA PARA:
Das Dores (Ruth de Souza) e Cyro Valdez (Tarcísio Meira)

CENA 3  -  PORTO AZUL  -  CHOUPANA DE MESTRE JONAS  -  INTERIOR  -  DIA.

DEITADO NA ESTEIRA SEM LENÇOL, UM MONTE DE TRAPOS USADOS COMO TRAVESSEIRO, DANIEL RESPIRAVA FUNDO. UM CHIADO FELINO ESCAPAVA DO PEITO DO INFELIZ. A LUZ DO LAMPIÃO MAL LHE ILUMINAVA O ROSTO CONSUMIDO PELA DOENÇA. JONAS, ROSA E INÊS OBSERVAVAM O TRABALHO DA REZADEIRA, CHAMADA ÀS PRESSAS. A PRETA VELHA MURMURAVA PALAVRAS INCOMPREENSÍVEIS, ENQUANTO DESLIZAVA UM RAMO DE ERVAS PELO CORPO INERTE DO RAPAZ.

INÊS  -  (não agüentou) Num acredito em rezadeira, pai. Precisa é chamá o médico.

ROSA  -  A gente tem de tentá tudo. Se não fizé bem, mal num faz.

MESTRE JONAS  -  E eu num chamei o médico lá dos mineiros? Ele não esteve aqui, não disse que num tem mais jeito pra dá?

A REZADEIRA CONTINUAVA EMITINDO ESTRANHOS SONS E A PASSAR AS ERVAS MACIAMENTE POR SOBRE O CORPO ESQUELÉTICO DE DANIEL.

DECIDIDO, MESTRE JONAS PÔS UM CASACO DE LÃ EM CIMA DA CAMISA DE GOLA ALTA E ENCAMINHOU-SE PARA A PORTA DO CASEBRE.

ROSA  -  (curiosa) Vai sair a essa hora?

MESTRE JONAS  -  Vou pra capital. Tenho que fazer alguma coisa, enfrentar qualquer dificuldade pra dar pro nosso Daniel o sentimento cristão da solidariedade. Do amparo final.

INÊS  -  Pai... posso ir com o senhô?

CORTA PARA:

CENA 4  -  PORTO AZUL  -  PRAIA BONITA  -  ALDEIA DOS PESCADORES  -  EXTERIOR  -  DIA.

HORAS MAIS TARDE, ENFRENTANDO O VENTO, COM A ABA DO PALETÓ LEVANTADA A PROTEGER-LHE O PEITO CONTRA O FRIO, CYRO VALDEZ CAMINHAVA PELA PRAIA, A PASSOS APRESSADOS, EM COMPANHIA DO MESTRE JONAS E DA FILHA, INÊS. AO LONGE DIVISARAM A FISIONOMIA ANGUSTIADA DA MULHER DO PESCADOR.

ROSA  -  (chorava, olhos vermelhos) Jonas... num adianta... num adianta mais!

MESTRE JONAS  -  (pesaroso) Morreu?

ROSA BALANÇOU A CABEÇA, AFIRMATIVAMENTE. O MÉDICO MAL ESPEROU PELA RESPOSTA. ENTROU NA CHOUPANA, IMPELIDO POR UM PRESSENTIMENTO.

CORTA PARA:

CENA 5  -  PORTO AZUL  -  CHOUPANA DE MESTRE JONAS  -  INTERIOR  -  DIA.

NO CHÃO, DEITADO DE COSTAS NA ESTEIRA, O RAPAZ PARECIA DORMIR. AO LADO A REZADEIRA, RESMUNGANDO REZAS. CYRO AJOELHOU-SE NO CHÃO E TOMOU O PULSO DO RAPAZ, AO MESMO TEMPO QUE, COM A OUTRA MÃO, LHE ABRIA AS PÁLPEBRAS E EXAMINAVA OS OLHOS. ABRIU A MALETA COM MOVIMENTOS RÁPIDOS.

CYRO  -  (sem olhar para a velha) Foi agora?

ROSA  -  (encostada à porta do quarto) Neste instante.

CYRO  -  (sussurrou) O corpo ainda está quente...

NUM IMPULSO, PÔS-SE A MASSAGEAR O CORAÇÃO, POR SOBRE O TÓRAX MINGUADO. PRESSIONAVA O PEITO COM AMBAS AS MÃOS, NUM MOVIMENTO LENTO, CADENCIADO. DURANTE MINUTOS QUE PARECERAM HORAS, CYRO VALDEZ EXERCITOU O MÚSCULO CARDÍACO DO PACIENTE.

ROSA  -  (descrente e angustiada) Ele num tá respirando mais. O coração já parou.

CYRO  -  (com total confiança) Mas vai voltar a bater.

DE REPENTE, OS LÁBIOS DO MORTO ENTREABRIRAM-SE COMO QUE BATIDOS POR UMA LEVE CORRENTE DE ENERGIA. O PEITO ELEVOU-SE, AS NARINAS INFLARAM-SE E DANIEL EMITIU UM RUÍDO AGONIZANTE, A PRINCÍPIO. AOS POUCOS A RESPIRAÇÃO SE NORMALIZAVA E O RITMO CARDÍACO ENTRAVA NUM COMPASSO NATURAL. CYRO ABRANDOU A PRESSÃO E DEIXOU QUE O ORGANISMO REAGISSE.

MESTRE JONAS  -  (sem acreditar no que via) Ele tá respirando de novo!

ROSA  -  (ajoelhando-se sobre o chão de barro) Deus do Céu!

INÊS  -  (gritou) O doutô fez ele vivê de novo!

MESTRE JONAS  -  (com a voz grave, emocionada) Ressuscitou ele!

TODOS RIAM E CHORAVAM A UM SÓ TEMPO. OLHOS VOLTADOS PARA AS MÃOS MILAGROSAS DO MÉDICO. MINUTOS DEPOIS DANIEL ABRIA OS OLHOS, ENQUANTO CYRO LHE APLICAVA UMA INJEÇÃO ENDOVENOSA.

DANIEL  -  (ainda fraco, com os olhos semicerrados) Foi a Companhia... que mandou o senhor?

CYRO  -  Não. Eu sou o Dr. Cyro Valdez.

DANIEL  -  (ergueu a cabeça, num esforço terrível) Ah... meu pai me falou... então não foi a Companhia... Foi Deus quem mandou!

ROSA  -  Milagre! Foi um milagre!

CYRO  -  Não foi milagre nenhum. Ele sofreu uma parada cardíaca. Parada do coração. Eu fiz uma massagem, procurando reativar a circulação. Isto é simples e muitas vezes dá resultado, quando feito a tempo. Como agora. A circulação se refaz, o coração volta a bater.

MESTRE JONAS  -  Mas ele estava morto!

ROSA  -  (ainda trêmula) E ressuscitou!

MESTRE JONAS   -  (balançou a cabeça, em expressão de êxtase) Na nossa vista!

CYRO  -  Mas é uma ressurreição que qualquer pessoa pode promover. O senhor mesmo, com um pouco de treino, pode fazer isso.

MESTRE JONAS  -  Não! Só quem tem poder sobrenatural, como o senhor! Só quem veio ao mundo como o senhor veio... e eu sei, porque recebi o aviso... eu e mais três crianças.

CYRO  -  Positivamente, eu não entendo o que o senhor está dizendo, mas um amigo seu, um mineiro chamado Lucas... me disse que o senhor não é homem de dizer tolices.

MESTRE JONAS  -  Lucas Pé-na-Cova? Ele foi uma das três crianças que sonharam...

CYRO  -  (aproximando-se) Sonharam com o quê?

MESTRE JONAS  -  O mesmo sonho... todo igualzinho... que uma moça chamada Orjana ia botá no mundo uma criança... que não era filho de nenhum homem da terra!

CYRO  -  (estarrecido) O senhor teve esse sonho?

MESTRE JONAS  -  Tive! Nove meses antes do seu nascimento. Na noite em que o sol apareceu no céu de Porto Azul. A noite virou dia, de repente. E no dia seguinte a praia amanheceu coberta de peixes mortos... que depois viveram de novo!

CYRO  -  (constrangido) Olhem, consegui reanimar Daniel, mas ele não está fora de perigo, precisa de medicamentos com urgência. Está intoxicado e se não for bem cuidado de nada adiantará o que fiz. Ele morrerá. Vou ao posto médico buscar os medicamentos de que ele necessita...

ROSA  -  (aflita) Mas o posto está fechado... Hoje não é dia de atender os mineiros! Que é que vamos fazer?

CYRO  -  (tranqüilizou-a com sua segurança) Não se preocupe... Eu trarei os remédios!

CORTA PARA:

CENA  6  -  PORTO AZUL  -  POSTO MÉDICO  -  EXTERIOR  -  DIA.

POUCO DEPOIS, ACOMPANHADO POR PÉ-NA-COVA O MÉDICO CHEGAVA AO POSTO QUE, COMO DISSERA ROSA, ESTAVA FECHADO. DEPOIS DE ESGOTAR TODOS OS MEIOS PARA CONSEGUIR QUE FOSSE ABERTO, E CERTO DE QUE A VIDA DE DANIEL DEPENDIA DOS MEDICAMENTOS QUE FÔRA BUSCAR, CYRO RESOLVEU ARROMBAR A PORTA E ENTRAR DE QUALQUER MANEIRA. PÉ-NA-COVA O ESPEROU DO LADO DE FORA PARA PREVENIR QUALQUER ATAQUE POR PARTE DOS CAPANGAS DO ADMINISTRADOR DAS MINAS. UMA VEZ DE POSSE DOS MEDICAMENTOS NECESSÁRIOS, O MÉDICO VOLTOU À CASA DE MESTRE JONAS.

CORTA PARA:

CENA  7  -  PORTO AZUL  - CHOUPANA DE MESTRE JONAS  -  INTERIOR  -  DIA.

CYRO DEU UMA PRIMEIRA DOSE AO DOENTE E EXPLICOU A ROSA COMO DEVERIAM SER DADAS AS OUTRAS DOSES. TODOS O OLHAVAM COM RESPEITO E GRATIDÃO.

MESTRE JONAS  -  Agora não tenho mais medo... Sei que o menino está salvo!

INÊS CORREU A BEIJAR AS MÃOS DO RAPAZ, E ROSA IA FAZER O MESMO, QUANDO O MÉDICO SE DESPRENDEU DAS DUAS, AFASTANDO-SE BRUSCAMENTE.

CYRO  -  Por favor... eu não sou um santo; sou um médico!

MESTRE JONAS  -  Nós sabemos.

CYRO ENCAMINHOU-SE PARA A PORTA. MESTRE JONAS COLOCOU SOBRE SEUS OMBROS A VELHA CAPA DE LÃ, COM QUE ENFRENTAVA OS RIGORES DO FRIO NO MAR, DURANTE SEMANAS A FIO.


FIM DO CAPÍTULO  7


 ... E NA PRÓXIMA QUINTA, MAIS UM CAPÍTULO INÉDITO!

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