Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira
CAPÍTULO 7
Participam deste
capítulo
Cyro -
Tarcísio Meira
Ester -
Gloria Menezes
Das Dores - Ruth de Souza
Lucas Pé-na-Cova - Antonio Pitanga
Mestre Jonas -
Gilberto Martinho
Rosa - Ana Ariel
Inês -
Betty Faria
Daniel - Paulo Araújo
Júlia - Ida Gomes
CENA 1 – ALDEIA DE
MINEIROS - EXTERIOR
- DIA.
ERA MANHÃ ALTA QUANDO O CARRO MODERNO, AZUL-METÁLICO, ENTROU,
EM MARCHA REDUZIDA, NA RUA PRINCIPAL DA ALDEIA DOS MINEIROS, NA PERIFERIA DE
FLORIANÓPOLIS. O MOTORISTA DIRIGIA CUIDADOSAMENTE, EVITANDO NA MEDIDA DO
POSSÍVEL OS TRECHOS MAIS ESBURACADOS. DE UM LADO E OUTRO, CASEBRES MISERÁVEIS.
JÚLIA APONTOU, COM EXCITAÇÃO, UMA CHOUPANA DE BARRO BATIDO. O CARRO ESTACOU,
COM LEVE DERRAPAGEM.
JÚLIA - (dirigindo-se a Ester, sentada a seu lado na
parte de trás do carro) É aqui... Mas... eu continuo achando uma loucura a
senhora se arriscar assim.
ESTER - (olhando o casebre) Eu não acho (e desceu do
automóvel, ajeitando o lenço que lhe envolvia os cabelos) Já volto.
CORTA PARA:
CENA 2 -
ALDEIA DOS MINEIROS - CASA DE DAS DORES - INTERIOR - DIA.
NO INTERIOR, TUDO MUITO POBRE: MESA TOSCA, BANCOS DE PERNAS
GASTAS, APENAS UMA CAMA DE COLCHÃO RÔTO, UM FOGAREIRO DE BRASAS E ALGUMAS LATAS
QUE SERVIAM DE PANELAS.
ESTER - (saudou a negra que correu a atendê-la) Bom
dia! A senhora é parenta de “seu” Gabriel, que foi jardineiro na casa do Sr.
Otto Muller?
DAS DORES - Sou sim. Ele era meu irmão.
ESTER - (retirou da bolsa um maço de notas novas) Eu
quero que saiba que estou revoltada com o que fizeram com ele. E como não tenho
outro modo de ajudar vocês, peço que aceitem meu auxílio.
DAS DORES - (recebeu o dinheiro, assustada ao ver o
“bolo” de notas) Mas, é muito dinheiro, dona! Eu não posso aceitar assim...
quem é a senhora?
ESTER - Não importa quem eu seja. Conheci “seu”
Gabriel, era um homem bom.
PÉ-NA-COVA - (entrou
na choupana, repentinamente) Das Dores, não sei o que tá acontecendo... tem um
moço aí querendo falá com alguém da família de Gabrié.
ESTER - (voltou-se para a negra) Por favor, não quero
ser vista.
ANTES QUE AS DUAS MULHERES PUDESSEM RETIRAR-SE PELA PORTA DOS
FUNDOS, CYRO VALDEZ PENETROU NO CASEBRE.
PÉ-NA-COVA - É esse o moço.
CYRO - Bom dia... Bom dia, minha senhora. Acho que
nos conhecemos.
ESTER - (respondeu com firmeza, tentando ocultar o
choque) Eu acho que o senhor está enganado.
CYRO - (insistiu) Nunca nos vimos?
ESTER - (mentiu, as mãos trêmulas) Nunca. Nem aqui
nem em parte alguma.
CYRO - No hospital... depois da operação do
comendador.
ESTER - Eu acho que o senhor me está confundindo com
outra pessoa. Bom dia!
SEM SE IMPORTAR COM A SAÍDA INEXPLICÁVEL, ESTER DESPEDIU-SE
DA JOVEM NEGRA E SAIU.
DAS DORES MOSTROU O DINHEIRO, AINDA INCRÉDULA, AO COMPANHEIRO
DE ALDEIA.
PÉ-NA-COVA - (assobiou, extático) Nossa mãe! Que
dinheirama! A trôco de quê?
DAS DORES - Ela falou no Bié... disse que queria ajudá a
gente!
PÉ-NA-COVA - (dirigiu-se a Cyro) O senhô também queria
falá com uma pessoa da família de Gabrié. Das Dores era irmã dele.
CYRO - (sem meias palavras) Eu assisti ele ser morto.
O CASAL DE FAVELADOS ARREGALOU OS OLHOS, NUMA EXPRESSÃO DE
ESPANTO.
DAS DORES - (chocada, procurou um banco para sentar-se) O
senhor!
CYRO - Ia passando quando vi dois homens, dois
brutamontes, espancando alguém. Gritei, protestei... mas não pude fazer nada.
Ele já estava morto. Eu nunca imaginei que um dia viesse a presenciar uma cena de tamanha covardia. Desde aquela
noite não consigo esquecer o que vi. Tinha mesmo um peso na consciência, não
sei por quê. Era como se, por ter presenciado, eu me sentisse cúmplice. Precisava vir aqui,
dizer isso a vocês.
PÉ-NA-COVA - A gente agradece. É difícil encontrar gente
assim como o senhor e essa moça.
CYRO - (puxou um cartão do bolso externo do paletó)
Eu me chamo Cyro Valdez. Sou médico. Não moro aqui, moro na Inglaterra. Devo
ficar mais uns dias, somente. Em todo caso, se precisarem de mim, durante esses
dias, estou no Hotel Central, em Florianópolis.
DAS DORES - Obrigada, doutô. O sinhô sabe, pobre nunca tá
bom da saúde, mas com a graça de Deus, nenhum de nós tem nada de grave. Só aí o
Luca, que tem uma tosse que vive consumindo ele...
PÉ-NA-COVA - (sorriu, sem graça) É tosse de mineiro,
mulhé. Todo mundo tem.
CYRO - Mas é preciso tratar. Tirar uma radiografia
dos pulmões. O trabalho nas minas é muito duro. Deve afetar os pulmões e o
coração também.
DAS DORES - O senhô não é daqui, por isso tá estranhando.
Danié, filho do Mestre Jonas, tá com menos de trinta anos e acho que não dura
uma semana.
CYRO - (interessado) Mestre Jonas! Quem é esse
Mestre Jonas? É um pescador de Porto Azul?
PÉ-NA-COVA - Esse mesmo. O filho dele é mineiro,
trabalhamo na mesma turma, em Novo Mundo. Já desmaiou duas vez lá embaixo.
CYRO - Engraçado... esse Mestre Jonas foi
procurar-me... ele parece que não regula muito bem...
DAS DORES - (reagiu) Mestre Jonas! Sei disso não. É um
home até muito ajuizado.
PÉ-NA-COVA - E muito instruído. Foi marinheiro quando era
moço... viajou, correu um pedaço do mundo, sabe das coisas.
CYRO - Mora na Praia Bonita?
DAS DORES - Isso mesmo.
CYRO - (atônito) Não é desequilibrado?!
PÉ-NA-COVA - Coisa nenhuma. Mestre Jonas tem o juízo mais
assentado que nós todo junto.
CYRO - (balbuciou) E o filho dele está muito
doente... Muito doente...
CORTA PARA:
Das Dores (Ruth de Souza) e Cyro Valdez (Tarcísio Meira) |
CENA 3 -
PORTO AZUL - CHOUPANA DE MESTRE JONAS -
INTERIOR - DIA.
DEITADO NA ESTEIRA SEM LENÇOL, UM MONTE DE TRAPOS USADOS COMO TRAVESSEIRO, DANIEL RESPIRAVA FUNDO. UM CHIADO FELINO ESCAPAVA DO PEITO DO
INFELIZ. A LUZ DO LAMPIÃO MAL LHE ILUMINAVA O ROSTO CONSUMIDO PELA DOENÇA.
JONAS, ROSA E INÊS OBSERVAVAM O TRABALHO DA REZADEIRA, CHAMADA ÀS PRESSAS. A
PRETA VELHA MURMURAVA PALAVRAS INCOMPREENSÍVEIS, ENQUANTO DESLIZAVA UM RAMO DE
ERVAS PELO CORPO INERTE DO RAPAZ.
INÊS - (não agüentou) Num acredito em rezadeira,
pai. Precisa é chamá o médico.
ROSA - A gente tem de tentá tudo. Se não fizé bem,
mal num faz.
MESTRE JONAS - E eu num chamei o médico lá dos mineiros? Ele
não esteve aqui, não disse que num tem mais jeito pra dá?
A REZADEIRA CONTINUAVA EMITINDO ESTRANHOS SONS E A PASSAR AS
ERVAS MACIAMENTE POR SOBRE O CORPO ESQUELÉTICO DE DANIEL.
DECIDIDO, MESTRE JONAS PÔS UM CASACO DE LÃ EM CIMA DA CAMISA
DE GOLA ALTA E ENCAMINHOU-SE PARA A PORTA DO CASEBRE.
ROSA - (curiosa) Vai sair a essa hora?
MESTRE JONAS - Vou pra capital. Tenho que fazer alguma
coisa, enfrentar qualquer dificuldade pra dar pro nosso Daniel o sentimento
cristão da solidariedade. Do amparo final.
INÊS - Pai... posso ir com o senhô?
CORTA PARA:
CENA 4 -
PORTO AZUL - PRAIA BONITA
- ALDEIA DOS PESCADORES -
EXTERIOR - DIA.
HORAS MAIS TARDE, ENFRENTANDO O VENTO, COM A ABA DO PALETÓ
LEVANTADA A PROTEGER-LHE O PEITO CONTRA O FRIO, CYRO VALDEZ CAMINHAVA PELA
PRAIA, A PASSOS APRESSADOS, EM COMPANHIA DO MESTRE JONAS E DA FILHA, INÊS. AO
LONGE DIVISARAM A FISIONOMIA ANGUSTIADA DA MULHER DO PESCADOR.
ROSA - (chorava, olhos vermelhos) Jonas... num
adianta... num adianta mais!
MESTRE JONAS - (pesaroso) Morreu?
ROSA BALANÇOU A CABEÇA, AFIRMATIVAMENTE. O MÉDICO MAL ESPEROU
PELA RESPOSTA. ENTROU NA CHOUPANA, IMPELIDO POR UM PRESSENTIMENTO.
CORTA PARA:
CENA 5 -
PORTO AZUL - CHOUPANA DE MESTRE JONAS -
INTERIOR - DIA.
NO CHÃO, DEITADO DE COSTAS NA ESTEIRA, O RAPAZ PARECIA
DORMIR. AO LADO A REZADEIRA, RESMUNGANDO REZAS. CYRO AJOELHOU-SE NO CHÃO E
TOMOU O PULSO DO RAPAZ, AO MESMO TEMPO QUE, COM A OUTRA MÃO, LHE ABRIA AS
PÁLPEBRAS E EXAMINAVA OS OLHOS. ABRIU A MALETA COM MOVIMENTOS RÁPIDOS.
CYRO - (sem olhar para a velha) Foi agora?
ROSA - (encostada à porta do quarto) Neste instante.
CYRO - (sussurrou) O corpo ainda está quente...
NUM IMPULSO, PÔS-SE A MASSAGEAR O CORAÇÃO, POR SOBRE O TÓRAX
MINGUADO. PRESSIONAVA O PEITO COM AMBAS AS MÃOS, NUM MOVIMENTO LENTO,
CADENCIADO. DURANTE MINUTOS QUE PARECERAM HORAS, CYRO
VALDEZ EXERCITOU O MÚSCULO CARDÍACO DO PACIENTE.
ROSA - (descrente e angustiada) Ele num tá
respirando mais. O coração já parou.
CYRO - (com total confiança) Mas vai voltar a bater.
DE REPENTE, OS LÁBIOS DO MORTO ENTREABRIRAM-SE COMO QUE
BATIDOS POR UMA LEVE CORRENTE DE ENERGIA. O PEITO ELEVOU-SE, AS NARINAS
INFLARAM-SE E DANIEL EMITIU UM RUÍDO AGONIZANTE, A PRINCÍPIO. AOS POUCOS A
RESPIRAÇÃO SE NORMALIZAVA E O RITMO CARDÍACO ENTRAVA NUM COMPASSO NATURAL. CYRO
ABRANDOU A PRESSÃO E DEIXOU QUE O ORGANISMO REAGISSE.
MESTRE JONAS - (sem acreditar no que via) Ele tá respirando
de novo!
ROSA - (ajoelhando-se sobre o chão de barro) Deus do
Céu!
INÊS - (gritou) O doutô fez ele vivê de novo!
MESTRE JONAS - (com a voz grave, emocionada) Ressuscitou
ele!
TODOS RIAM E CHORAVAM A UM SÓ TEMPO. OLHOS VOLTADOS PARA AS
MÃOS MILAGROSAS DO MÉDICO. MINUTOS DEPOIS DANIEL ABRIA OS OLHOS, ENQUANTO CYRO
LHE APLICAVA UMA INJEÇÃO ENDOVENOSA.
DANIEL - (ainda fraco, com os olhos semicerrados) Foi
a Companhia... que mandou o senhor?
CYRO - Não. Eu sou o Dr. Cyro Valdez.
DANIEL - (ergueu a cabeça, num esforço terrível) Ah...
meu pai me falou... então não foi a Companhia... Foi Deus quem mandou!
ROSA - Milagre! Foi um milagre!
CYRO - Não foi milagre nenhum. Ele sofreu uma parada
cardíaca. Parada do coração. Eu fiz uma massagem, procurando reativar a
circulação. Isto é simples e muitas vezes dá resultado, quando feito a tempo.
Como agora. A circulação se refaz, o coração volta a bater.
MESTRE JONAS - Mas ele estava morto!
ROSA - (ainda trêmula) E ressuscitou!
MESTRE JONAS - (balançou a cabeça, em expressão de êxtase)
Na nossa vista!
CYRO - Mas é uma ressurreição que qualquer pessoa
pode promover. O senhor mesmo, com um pouco de treino, pode fazer isso.
MESTRE JONAS - Não! Só quem tem poder sobrenatural, como o
senhor! Só quem veio ao mundo como o senhor veio... e eu sei, porque recebi o
aviso... eu e mais três crianças.
CYRO - Positivamente, eu não entendo o que o senhor
está dizendo, mas um amigo seu, um mineiro chamado Lucas... me disse que o
senhor não é homem de dizer tolices.
MESTRE JONAS - Lucas Pé-na-Cova? Ele foi uma das três
crianças que sonharam...
CYRO - (aproximando-se) Sonharam com o quê?
MESTRE JONAS - O mesmo sonho... todo igualzinho... que uma
moça chamada Orjana ia botá no mundo uma criança... que não era filho de nenhum
homem da terra!
CYRO - (estarrecido) O senhor teve esse sonho?
MESTRE JONAS - Tive! Nove meses antes do seu nascimento. Na
noite em que o sol apareceu no céu de Porto Azul. A noite virou dia, de
repente. E no dia seguinte a praia amanheceu coberta de peixes mortos... que
depois viveram de novo!
CYRO - (constrangido) Olhem, consegui reanimar
Daniel, mas ele não está fora de perigo, precisa de medicamentos com urgência.
Está intoxicado e se não for bem cuidado de nada adiantará o que fiz. Ele
morrerá. Vou ao posto médico buscar os medicamentos de que ele necessita...
ROSA - (aflita) Mas o posto está fechado... Hoje não
é dia de atender os mineiros! Que é que vamos fazer?
CYRO - (tranqüilizou-a com sua segurança) Não se
preocupe... Eu trarei os remédios!
CORTA PARA:
CENA 6
- PORTO AZUL -
POSTO MÉDICO - EXTERIOR
- DIA.
POUCO DEPOIS, ACOMPANHADO POR PÉ-NA-COVA O MÉDICO CHEGAVA AO
POSTO QUE, COMO DISSERA ROSA, ESTAVA FECHADO. DEPOIS DE ESGOTAR TODOS OS MEIOS
PARA CONSEGUIR QUE FOSSE ABERTO, E CERTO DE QUE A VIDA DE DANIEL DEPENDIA DOS
MEDICAMENTOS QUE FÔRA BUSCAR, CYRO RESOLVEU ARROMBAR A PORTA E ENTRAR DE
QUALQUER MANEIRA. PÉ-NA-COVA O ESPEROU DO LADO DE FORA PARA PREVENIR QUALQUER
ATAQUE POR PARTE DOS CAPANGAS DO ADMINISTRADOR DAS MINAS. UMA VEZ DE POSSE DOS
MEDICAMENTOS NECESSÁRIOS, O MÉDICO VOLTOU À CASA DE MESTRE JONAS.
CORTA PARA:
CENA 7
- PORTO AZUL - CHOUPANA DE MESTRE JONAS -
INTERIOR - DIA.
CYRO DEU UMA PRIMEIRA DOSE AO DOENTE E EXPLICOU A ROSA COMO
DEVERIAM SER DADAS AS OUTRAS DOSES. TODOS O OLHAVAM COM RESPEITO E GRATIDÃO.
MESTRE JONAS - Agora não tenho mais medo... Sei que o menino
está salvo!
INÊS CORREU A BEIJAR AS MÃOS DO RAPAZ, E ROSA IA FAZER O
MESMO, QUANDO O MÉDICO SE DESPRENDEU DAS DUAS, AFASTANDO-SE BRUSCAMENTE.
CYRO - Por favor... eu não sou um santo; sou um
médico!
MESTRE JONAS - Nós sabemos.
CYRO ENCAMINHOU-SE PARA A PORTA. MESTRE JONAS COLOCOU SOBRE
SEUS OMBROS A VELHA CAPA DE LÃ, COM QUE ENFRENTAVA OS RIGORES DO FRIO NO MAR,
DURANTE SEMANAS A FIO.
FIM DO CAPÍTULO 7
... E NA PRÓXIMA QUINTA, MAIS UM CAPÍTULO INÉDITO!
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