segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

      CAPÍTULO 4

    No alpendre da casa grande da fazenda, Estela e Pedro Barros conversavam. Típica construção do interior, com salas imensas, varandas largas, paredes fortemente caiadas e interiores decorados com ostentação e mau gosto. No terreiro algumas galinhas ciscavam á procura de alimento. Vários homens tentavam aquietar a indocilidade de um touro nas cercanias do curral. Maria de Lara acabava de chegar. Os pais foram ao encontro da filha.
    -Então? Gostou da cidadezinha? Muita diferença?
    -Não sei, pai. Saí daqui tão criança que nem me lembrava mais. Algumas coisas sim... algumas coisas tinham ficado na minha memória.
    -Mas a cidade não mudou nada – interveio Estela. – Aquele mesmo atraso. Aquela mesma gente inexpressiva.
    -Sim, mas a miséria do povo... Porquê há tanta miséria, pai, numa região tão rica?
    -É a gente que é preguiçosa, não quer trabalhar. Acham um diamantezinho, um olho de mosquito, vem aqui, vendem e só voltam a trabalhar depois que o dinheiro acaba.
    -Mas a maioria não é empregada no seu garimpo?
    Pedro Barros titubeou. Era visível seu aborrecimento. “Este assunto não deveria interessar a mulheres”  - pensou.
    -É preciso vigiar dia e noite pra não me roubarem. Ontem mesmo um deles engoliu uma pedra. Tivemos de lhe dar uma dose dupla de óleo de rícino e o desgraçado, ainda assim, não devolveu a pedra. Nem com purga, nem com sova. Negro danado...
    A criada apareceu anunciando o almoço. Os gestos grosseiros impressionavam a jovem desacostumada a suas maneiras rudes. Era duro no falar, duro nas expressões. Um pai que não se ajustava ao seu modo de proceder e de ver as coisas. Voltou ao tema.
    -O povo de Coroado parece gente muito triste, mesmo vivendo num lugar onde se tem tudo para ser alegre.
    -Alegre? Aqui? Neste fim de mundo? – comentou Estela. – Isto é um buraco horroroso.
    Pedro Barros eriçou-se.
    -Mas é aqui que eu ganho a vida.
    -Sim, é aqui que você enche a pança. Mas é aqui que eu enterro minha mocidade, Pedro. Você está podre de rico, mas até hoje eu ainda não vivi. Presa neste desterro sem ver o mundo.
    -Papai tem razão. Esse é o negocio dele.
    -Você diz isso porquê sempre viveu na cidade. Queria que você vivesse aqui. Como eu. Em meio a essa gente porca e ignorante.
    Pedro Barros isolara-se do mundo. Nada ouvia. Devorava um frango, mãos ensebadas, tirando dos ossos a carne gorda. Restos de comida caíam-lhe pelos cantos da boca. Estela enojava-se com a visão repelente do marido.
    -Ô homem, vê se não se lambuza tanto! Parece um animal.
    -Comer frango sem se lambuzar, não tem graça.
    Lara se incomodava com as reprimendas e reações da mãe.Via o pai, animalesco, desligado das etiquetas, inteiramente absorvido no ato de comer. A seu lado a mãe -  jovem ainda nos seus quarenta anos – revoltada contra anos de maus tratos e solidão forçada. “É moça ainda” – pensava.
    Lourenço entrou intempestivamente. Era homem de meia-idade – bem conservado, com certo charme – de modos decididos. Sólido como a própria região do garimpo. Entrou com a naturalidade do hábito diário.
    -Boas tardes, coronel.
    A presença de Lara desconcertou-o um pouco.
    -Não sabia que tinha visita.
    O coronel respondeu sem levantar os olhos do prato – voz embargada pelo frango gordo.
    -É minha filha Lara. Maria de Lara. Chegou ontem do Rio. Esteve lá estudando. Voltou doutora.
    Estela corrigiu.
    -Que doutora, Pedro. Professora.
    -É a mesma coisa.
     E voltando-se para a filha.
    -Êsse é o Lourenço, meu braço-direito aqui em Coroado.
    Os olhos da moça e os do recém-chegado encontraram-se durante fração de segundos. Das mãos grossas e calosas do capataz sobressaiam dedos fortes. Cabeludos. Lara fixou o brilho dos anéis. Pedras coruscantes, imensas. Lembrou-se da gente humilde das redondezas. Casas de barro, coberturas de sapé, chão de terra. Vidas miseráveis. E das palavras do pai – “...é preciso vigiar dia e noite para não me roubarem...”
    Lourenço dirigiu-se ao coronel.
    -O senhor sabe qual foi a resposta que o patife do João Coragem lhe mandou?
    Pedro Barros ergueu a cabeça, atento, limpando os lábios com o dorso das mãos.
    -Ele e o irmão mandaram dizer que vão vender diamantes  pros gringos ou pra quem quiser.
     Uma chispa de cólera transpareceu nos olhos do velho chefe. Pedro Barros levantou-se num repelão.
    -Pois eu quero ver alguém vender diamante pros gringos. Vou pagar pra ver isso.
    A ira do coronel crescia amedrontadoramente.
    -Juca! Juca Cipó! Onde se meteu esse desgraçado?
    Pedro desapareceu pela porta. Lourenço ainda falou:
    -Fique descansado, coronel. Tou vigilante. Tem homem por todo canto da cidade e eles não vão ser bestas de trair a gente...
    Os gritos de Pedro Barros ecoavam no interior da casa – “Juca! Moleque safado!” Dentro de Estela ecoavam gritos diferentes. Dirigiu-se ao homem.
    -Porquê não tem vindo aqui? Esqueceu que eu existo?
    Lourenço respondeu num balbucio.
    -Muito trabalho. Muito trabalho.
    Parou a poucos passos do capataz. Olhos vidrados. Voz adocicada.
    -E durante todo este tempo não sentiu um pouquinho de saudade de mim? Jura?
    Os berros de Pedro morriam na distancia – “Juca! Moleque desgraçado!”



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