sábado, 6 de setembro de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 55


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 55

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Otto  -  Jardel Filho
Inês  -  Betty Faria
Zoraida  -  Jurema Penna
Baby  -  Claudio Cavalcanti
Rosa  - Ana Ariel
Daniel  -  Paulo Araújo
Lia  -  Arlete Sales
Dr. Max  - Alvaro Aguiar
Enfermeira Dirce  - Sônia Ferreira
Dona Conceição  - Zeni Pereira

CENA 1  -  PALACETE DO COMENDADOR LIBERATO  -  SALA DE JANTAR  -  INTERIOR  -  NOITE

AOS POUCOS ZORAIDA DOMINAVA POR COMPLETO A MOÇA HUMILDE DA VILA DOS PESCADORES. PASSADO MAIS DE UM MÊS DO CASAMENTO, INÊS SOFRIA A TORTURA DAS REPREENSÕES DIÁRIAS, SUCESSIVAS, DA VELHA GOVERNANTA. ELA NÃO PERDOAVA A MULHER QUE HAVIA APRISIONADO BABY NUMA TEIA, LEVANDO-O ÀQUILO QUE MAIS DETESTAVA: O CASAMENTO. PARA ELA, INÊS ERA UMA INTRUSA. NÃO TINHA DIREITO A PERMANECER NAQUELA RESIDENCIA DE GENTE DE UM OUTRO PADRÃO SOCIAL. ERA BURRA. INCULTA. GENTINHA.

E NAQUELA NOITE A JOVEM DESCERA DE SEUS APOSENTOS PARA ESPERAR O MARIDO.

ZORAIDA  -  (falou com rudeza) Ele não chega cedo!

INÊS  -  Eu espero, ué. A não ser que a senhora não queira que eu espere ele aqui. Nesse caso, vou pro meu quarto...

ZORAIDA  -  (com azedume, sem fitar a mulher que detestava) Você pode esperar onde quiser!

INÊS  -  Leandro disse... que eu tou na minha casa. Que eu tenho o direito de ficá aqui ou no quarto. Disse até pra mim tomá banho de piscina, amanhã cedo. É que eu nunca entrei numa piscina e tenho medo.

A VELHA FITOU-A COMO SE A JOVEM FOSSE UMA PROSTITUTA.

ZORAIDA  -  (estava lívida) Baby não pode ter dito isto. Ele sabe que esta casa é do pai dele. Portanto a dona da casa teria de ser a esposa do senhor comendador, se estivesse viva. A esposa de Baby só pode estar aqui de favor...

INÊS  -  O Leandro disse...

ZORAIDA  -  (cortou) E pare de chamar o meu menino de Leandro! Só quem chamava ele assim era eu, quando pequeno! Ninguém mais!

INÊS  -  Mas eu gosto mais de Leandro...

ZORAIDA  -  (ordenou) Chega! Eu não quero que você o chame de Leandro e basta!

INÊS CALOU A BOCA E SE ACONCHEGOU A UM CANTO, DESOLADA.

CORTA PARA:

CENA 2  -  HOSPITAL  -  QUARTO ESPECIAL  -  INTERIOR  -  DIA

OTTO MULLER OLHAVA O QUARTO CLARO, A IMAGEM DE CRISTO NO ALTO, À CABECEIRA DA CAMA. AS PERSIANAS ABERTAS. UM MUNDO INTEIRAMENTE NOVO. COMO SE DESPERTASSE DE UM SONHO TRANQUILO E REPARADOR. ATÉ SE SENTIA BEM. COM ENERGIA REDOBRADA. OLHOU A ENFERMEIRA A SEU LADO. MORENA. DE BRANCO. COM A BANDEJA CHEIA DE MEDICAMENTOS, COPOS E INSTRUMENTOS MÉDICOS.

VIU QUANDO A PORTA SE ABRIU E O DR. CYRO VALDEZ ENTROU NO QUARTO. A ENFERMEIRA FOI A SEU ENCONTRO, ANIMADA.

ENFERMEIRA  -  Ele está muito bem hoje, doutor. Perguntou quando o senhor viria. Hoje está plenamente consciente, mas guarda ainda recordações de ontem, quando voltou a si. Falou do transplante.

CYRO  -  (aproximou-se do paciente e sorriu, amistosamente) Estou satisfeito de ver que o senhor está se recuperando bem...

OTTO  -  (olhou-o demoradamente e falou com dificuldade) Então... é verdade... que estou de coração novo, doutor?

CYRO  -  Está, Sr. Otto. Um coração forte, muito melhor do que aquele seu, que estava pedindo socorro.

OTTO  -  (em voz baixa, como se pensasse alto) Estranho isso... é uma sensação por demais... como posso dizer?... Uma sensação muito forte... saber que em meu peito bate o coração de outra pessoa... que já morreu!

CYRO  -  Espero que esta sensação não lhe seja prejudicial. Deve encarar o fato cientificamente. Nós lhe salvamos a vida porquê trocamos o seu coração.  A não ser que preferisse acordar no outro mundo...

OTTO  -  Não... foi bom, muito bom, acordar aqui... neste quarto... que me parece ser da Terra. (perguntou, brincando) É a Terra, não é?

ENFERMEIRA  -  (sorrindo também e ajeitando o travesseiro sob a cabeça do operado) Ele está de bom humor! Vejam só!

OTTO  -  (esboçando um sorriso antipático) Não me diga que o meu coração novo é de mulher!

CYRO  -  (sorridente) Posso lhe garantir que é de homem. Um homem forte... rijo... bom.

CYRO TOMOU O PULSO DE OTTO E CONTOU AS PULSAÇÕES. LEU A FICHA QUE A ENFERMEIRA LHE ENTREGOU E ENCOSTOU O ESTETOSCÓPIO NO PEITO ENFAIXADO DO DOENTE. TUDO EM ORDEM.

OTTO  -  Estou passando por algum período perigoso?

CYRO  -  Estamos superando-o.

OTTO  -  Por que me mantém neste quarto tão especial?

CYRO  -  Para evitar qualquer espécie de contágio. O senhor está proibido de ficar doente!

OTTO  -  Quando... poderei... voltar... para o outro quarto?

CYRO  -  Dentro de alguns dias. Tenha um pouco mais de paciência.

ENFERMEIRA  -  Parece que está correndo tudo bem, não, doutor?

CYRO  -  (concordou) Vamos aumentar a dose de antibiótico e conferir de hora em hora o ritmo cardíaco.

E DURANTE ALGUNS SEGUNDOS O CIRURGIÃO PRESCREVEU O TRATAMENTO E OS CUIDADOS ESPECIAIS DEVIDOS AO DOENTE. LOGO APÓS, A ENFERMEIRA DEIXOU O QUARTO.

OTTO ESTENDEU A MÃO, AINDA FRACA, E SEGUROU A DO MÉDICO. CYRO VOLTOU-SE, ADMIRADO.

OTTO  -  Eu... lhe devo a vida, doutor!

CYRO  OLHOU-O FIXAMENTE. TODA UMA SÉRIE DE LEMBRANÇAS LHE PASSARAM PELA MENTE, COMO NUM FILME DE CINEMA.

CYRO  -  Não especialmente a mim, Sr. Otto.

OTTO  -  De qualquer maneira eu lhe agradeço. E sei ser agradecido... quando quero. Eu me sinto ligado a senhor por um elo muito forte, que se chama vida. A minha vida, doutor. Estou muito comovido pelo fato de estar vivo. É muito bom... a gente estar vivo! E eu quero ficar assim muito tempo, ainda! Eu quero viver... eu quero. E o senhor tem de me ajudar!

CORTA PARA:
Baby e Inês

CENA 3  -  PALACETE DO COMENDADOR LIBERATO  -  QUARTO DE INÊS -  INTERIOR  -  DIA

PELA PRIMEIRA VEZ INÊS TINHA RECEBIDO A VISITA DA MÃE E DO IRMÃO, DANIEL, EMBORA ZORAIDA SE MOSTRASSE FRANCAMENTE DESPEITADA. A PRESENÇA DE BABY CONTORNARA OS PROBLEMAS, MAS AOS OLHOS DE ROSA TUDO FICARA MUITO CLARO: A FILHA VIVIA UMA VIDA INFERNAL, PRESA NUM PALÁCIO DOURADO!

DEPOIS DAS DESPEDIDAS, BABY CORRERA PARA SEU LADO.

INÊS  -  (irônica) Será que eu representei bem?

O MARIDO TIRAVA O PALETÓ E SE SENTAVA À BEIRA DA CAMA.

BABY  -  Do que está falando?

INÊS  -  Representei bem... o papel de mulher casada feliz?

BABY  -  Por que a graça? Você não é feliz?

INÊS  -  Acha que eu sou?

BABY  -  Você tem o que quer, não?

INÊS  -  Acha que tenho?

BABY  -  (aborrecido) Acha... não acha, que onda é essa?

INÊS  -  Fiz de tudo... pra que meu irmão pensasse que eu tou feliz... pra não estragá teus plano.

BABY  -  Que bobajada você está dizendo, Inês!

INÊS  -  Eu falo... do apoio que meu irmão tem que te dá... nas mina. Eu não quero que ele deixa de te dá o apoio. Então... não contei nada... que você não liga pra mim... que a gente mal se vê. Que você entra neste quarto quando te dá na bola... que me esquece o dia inteiro, aqui... que beija outra mulher na minha frente (referia-se à noite em que Baby voltara à casa com Tula, embriagados e se beijaram diante dos olhos agoniados da esposa infeliz) ... que Tula te telefona o dia inteiro pra ir se encontrá com ela, porque tá com dor de cotovelo e você serve pra aliviá o mal dela... ela tá gamadona pelo Cesário... teu capataz! Nada disso eu contei pro meu irmão... só pra não te estragá diante dele.

BABY  -  (levantou-se, amuado) Eu sabia que você ia estragar tudo. Entrei aqui... e entrei com disposição de ficar com você...

INÊS  -  Pra mim num pensá que você tava fingindo na frente do meu irmão e da mãe. Mas pode deixá, Leandro... num conto pra ninguém... que nosso casamento... foi um tremendo erro. Pode deixá!

BABY  -  (apontando-lhe o dedo) Olhe... é você quem não quer viver bem. O que eu não aguento é mulher chata!

INÊS  -  Tula não é chata? Hem? Me diga! Tula não é chata?

BABY NÃO RESPONDEU. BATEU A PORTA COM VIOLENCIA E SE AFASTOU APRESSADO. OS PASSOS PERDERAM-SE NA ESCADARIA DE ACESSO AO PAVIMENTO INFERIOR.

CORTA PARA:

CENA 4  -  HOSPITAL  -  QUARTO DE OTTO  -  INTERIOR  -  DIA

JÁ SE TINHAM PASSADO 25 DIAS DA OPERAÇÃO. OTTO FÔRA REMOVIDO PARA SEU ANTIGO QUARTO, ULTRAPASSADA A FASE PIOR.
NAQUELA MANHÃ, O PRÓPRIO DIRETOR DO HOSPITAL, DR. MAX, EM COMPANHIA DA ENFERMEIRA-CHEFE, CUIDAVA DO PACIENTE.

OTTO  -  (com otimismo) Ainda bem que estou de novo neste quarto. Aquele outro... podem apelidá-lo de quarto dos suplícios.

DR. MAX  -  Não é tanto assim, Sr. Otto!

OTTO  -  Só eu sei o que sofri... parece que paguei por todos os meus pecados. Sondas e sondas por todos os orifícios do meu corpo... nariz, boca... e aquela coisa horrível que me enfiavam no peito... para retirar a secreção.

DR. MAX  -  Esqueça... já passou e o senhor está pronto para outra.

DR. MAX ACABARA DE EXAMINAR O PACIENTE E CONSTATARA O EXCELENTE ESTADO GERAL. TUDO FUNCIONANDO ÀS MIL MARAVILHAS NO ORGANISMO DO ALEMÃO.

OTTO  -  (franziu a testa, antes de fazer a pergunta que o deixava intrigado) O homem que me deu o coração era... jovem e bonito, doutor?

A ENFERMEIRA OLHOU DISCRETAMENTE PARA O MÉDICO.

DR. MAX  -  Dona Dirce é quem o viu. Confesso que quem se incumbiu de tudo foi o Dr. Cyro.

ENFERMEIRA  -  (assentiu, sorrindo meio sem graça) Era... era jovem e bonito!

OTTO  -  (brincalhão) Por isso é que já estou apaixonado por todas as enfermeiras deste hospital...

SORRIRAM TODOS.

ENFERMEIRA  -  Pelo menos o dono do coração devia ser um sujeito bem humorado. Porque o senhor está com um humor fora do comum...

OTTO  -  Estou contente de estar vivo... Mas, não sei bem se vale a pena estar vivo.

OS OLHOS AZUIS DE OTTO MULLER TORNAVAM A GANHAR LUMINOSIDADE. A LUMINOSIDADE MALÉFICA DO HOMEM QUE TORTURAVA, MATAVA E FAZIA MAL A MEIO MUNDO.

ENFERMEIRA  -  (dirigiu-se ao médico-diretor) A família dele, toda, está esperando para entrar. Posso deixá-los?

DR. MAX  -  É a primeira vez que o vêem depois da operação?

ENFERMEIRA  -  A primeira que conversam com ele. Que o veem consciente.

DR. MAX  -  Deixe entrar... dois por vez... e previna para que não o façam falar.

CORTA PARA:

CENA 5  -  HOSPITAL  -  CORREDOR  -  INTERIOR  -  DIA

AFASTADA DE TODOS, QUASE IGNORADA PELOS QUE TRANSITAVAM PELO CORREDOR, A VELHA NEGRA, GORDA, CABELOS GRISALHOS, ESPERAVA PACIENTEMENTE A ABERTURA DA PORTA. VIU QUANDO A ENFERMEIRA SAIU DO QUARTO ONDE SE ACHAVA O OPERADO. LEVANTOU-SE E PEGOU-A PELO BRAÇO, COM FORÇA SURPREENDENTE.

DIRCE  -  (voltou-se assustada) A senhora está esperando... o quê?

DONA CONCEIÇÃO  -  Me dissero que o duente já tá recebendo visita.

DIRCE  -  Sim. E daí?

DONA CONCEIÇÃO  -  Daí, moça... que eu quero vê ele!

DIRCE  -  (encarou a velha, admirada) A senhora?

DONA CONCEIÇÃO  -  (decidida) O Doutô Cyro me prometeu... que quando ele tivesse melhó... eu podia vê ele.

DIRCE  -  É que... o Dr. Cyro... não está aí.

DONA CONCEIÇÃO  -  (suplicou, com as mãos postas) Dá um jeitinho! Pelo amor de Deus... me deixa entrá... pra vê esse home. Pelo amor de Deus!

CORTA PARA:

CENA 6  -  HOSPITAL  -  SALA DE ESPERA  -  INTERIOR  -  NOITE

LIA RECONHECEU A VELHA E SUSPIROU FUNDO.

DONA CONCEIÇÃO EXPLICOU O MOTIVO DE SUA PRESENÇA ALI. QUERIA APENAS VER O HOMEM EM CUJO PEITO PULSAVA O CORAÇÃO DO FILHO, DE QUEM MORRIA DE SAUDADE. E AGORA LÁ ESTAVA ELA DIANTE DE OTTO MULLER. JÁ ERA NOITE E O QUARTO ESTAVA ÀS ESCURAS. CONCEIÇÃO ENTROU, EMOCIONADA. O CORAÇÃO AOS PULOS. APROXIMOU-SE DO LEITO DE OTTO MULLER, QUE DORMIA PROFUNDAMENTE. OLHOU-O ENTERNECIDA À LUZ DO PEQUENO ABAJUR.

DONA CONCEIÇÃO  -  (falou baixinho como se orasse a Deus) Deixa eu só... pegá no rosto dele, moça. Um pouquinho só... um pouquinho!

LIA  -  (ordenou, atemorizada) Não, Dona Conceição, não!

OTTO RESPIRAVA FUNDO.

DONA CONCEIÇÃO  -  Eu tenho de fazê isso. Quero só senti... o coração!

A VELHA MULHER COLOCOU DUAS MÃOS NEGRAS SOBRE O PEITO BRANCO DO HOMEM QUE ODIAVA OS NEGROS. OS DE SUA RAÇA. COM ESPANTO, LIA OUVIU O MURMÚRIO DA VELHA NEGRA.

DONA CONCEIÇÃO  -  Meu filho! Meu filho!

OTTO GEMEU E DESPERTOU, ESFREGANDO OS OLHOS AO MESMO TEMPO EM QUE LIA EMPURRAVA A MULHER PARA FORA DO QUARTO, EM PENUMBRA. O DESPERTAR FÔRA BREVE, INCONSCIENTE COMO NUM SONHO. OTTO VOLTOU A DORMIR SEGUNDOS DEPOIS, ENQUANTO LIA ACARINHAVA-LHE O ROSTO E A CABEÇA.

FIM DO CAPÍTULO  55


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