Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira
CAPÍTULO 55
Participam deste
capítulo
Cyro -
Tarcísio Meira
Otto -
Jardel Filho
Inês -
Betty Faria
Zoraida - Jurema Penna
Baby -
Claudio Cavalcanti
Rosa - Ana Ariel
Daniel -
Paulo Araújo
Lia - Arlete Sales
Dr. Max - Alvaro Aguiar
Enfermeira Dirce - Sônia Ferreira
Dona Conceição - Zeni Pereira
CENA 1 - PALACETE
DO COMENDADOR LIBERATO - SALA DE JANTAR -
INTERIOR - NOITE
AOS POUCOS ZORAIDA DOMINAVA POR COMPLETO A MOÇA HUMILDE DA
VILA DOS PESCADORES. PASSADO MAIS DE UM MÊS DO CASAMENTO, INÊS SOFRIA A TORTURA
DAS REPREENSÕES DIÁRIAS, SUCESSIVAS, DA VELHA GOVERNANTA. ELA NÃO PERDOAVA A
MULHER QUE HAVIA APRISIONADO BABY NUMA TEIA, LEVANDO-O ÀQUILO QUE MAIS
DETESTAVA: O CASAMENTO. PARA ELA, INÊS ERA UMA INTRUSA. NÃO TINHA DIREITO A
PERMANECER NAQUELA RESIDENCIA DE GENTE DE UM OUTRO PADRÃO SOCIAL. ERA BURRA.
INCULTA. GENTINHA.
E NAQUELA NOITE A JOVEM DESCERA DE SEUS APOSENTOS PARA
ESPERAR O MARIDO.
ZORAIDA - (falou com rudeza) Ele não chega cedo!
INÊS - Eu espero, ué. A não ser que a senhora não
queira que eu espere ele aqui. Nesse caso, vou pro meu quarto...
ZORAIDA - (com azedume, sem fitar a mulher que
detestava) Você pode esperar onde quiser!
INÊS - Leandro disse... que eu tou na minha casa.
Que eu tenho o direito de ficá aqui ou no quarto. Disse até pra mim tomá banho
de piscina, amanhã cedo. É que eu nunca entrei numa piscina e tenho medo.
A VELHA FITOU-A COMO SE A JOVEM FOSSE UMA PROSTITUTA.
ZORAIDA - (estava lívida) Baby não pode ter dito isto.
Ele sabe que esta casa é do pai dele. Portanto a dona da casa teria de ser a
esposa do senhor comendador, se estivesse viva. A esposa de Baby só pode estar
aqui de favor...
INÊS - O Leandro disse...
ZORAIDA - (cortou) E pare de chamar o meu menino de
Leandro! Só quem chamava ele assim era eu, quando pequeno! Ninguém mais!
INÊS - Mas eu gosto mais de Leandro...
ZORAIDA - (ordenou) Chega! Eu não quero que você o
chame de Leandro e basta!
INÊS CALOU A BOCA E SE ACONCHEGOU A UM CANTO, DESOLADA.
CORTA PARA:
CENA 2 -
HOSPITAL - QUARTO ESPECIAL -
INTERIOR - DIA
OTTO MULLER OLHAVA O QUARTO CLARO, A IMAGEM DE CRISTO NO
ALTO, À CABECEIRA DA CAMA. AS PERSIANAS ABERTAS. UM MUNDO INTEIRAMENTE NOVO.
COMO SE DESPERTASSE DE UM SONHO TRANQUILO E REPARADOR. ATÉ SE SENTIA BEM. COM
ENERGIA REDOBRADA. OLHOU A ENFERMEIRA A SEU LADO. MORENA. DE BRANCO. COM A
BANDEJA CHEIA DE MEDICAMENTOS, COPOS E INSTRUMENTOS MÉDICOS.
VIU QUANDO A PORTA SE ABRIU E O DR. CYRO VALDEZ ENTROU NO
QUARTO. A ENFERMEIRA FOI A SEU ENCONTRO, ANIMADA.
ENFERMEIRA - Ele está muito bem hoje, doutor. Perguntou
quando o senhor viria. Hoje está plenamente consciente, mas guarda ainda
recordações de ontem, quando voltou a si. Falou do transplante.
CYRO - (aproximou-se do paciente e sorriu,
amistosamente) Estou satisfeito de ver que o senhor está se recuperando bem...
OTTO - (olhou-o demoradamente e falou com
dificuldade) Então... é verdade... que estou de coração novo, doutor?
CYRO - Está, Sr. Otto. Um coração forte, muito
melhor do que aquele seu, que estava pedindo socorro.
OTTO - (em voz baixa, como se pensasse alto)
Estranho isso... é uma sensação por demais... como posso dizer?... Uma sensação
muito forte... saber que em meu peito bate o coração de outra pessoa... que já
morreu!
CYRO - Espero que esta sensação não lhe seja
prejudicial. Deve encarar o fato cientificamente. Nós lhe salvamos a vida
porquê trocamos o seu coração. A não ser
que preferisse acordar no outro mundo...
OTTO - Não... foi bom, muito bom, acordar aqui...
neste quarto... que me parece ser da Terra. (perguntou, brincando) É a Terra,
não é?
ENFERMEIRA - (sorrindo também e ajeitando o travesseiro
sob a cabeça do operado) Ele está de bom humor! Vejam só!
OTTO - (esboçando um sorriso antipático) Não me diga
que o meu coração novo é de mulher!
CYRO - (sorridente) Posso lhe garantir que é de
homem. Um homem forte... rijo... bom.
CYRO TOMOU O PULSO DE OTTO E CONTOU AS PULSAÇÕES. LEU A FICHA
QUE A ENFERMEIRA LHE ENTREGOU E ENCOSTOU O ESTETOSCÓPIO NO PEITO ENFAIXADO DO
DOENTE. TUDO EM ORDEM.
OTTO - Estou passando por algum período perigoso?
CYRO - Estamos superando-o.
OTTO - Por que me mantém neste quarto tão especial?
CYRO - Para evitar qualquer espécie de contágio. O
senhor está proibido de ficar doente!
OTTO - Quando... poderei... voltar... para o outro
quarto?
CYRO - Dentro de alguns dias. Tenha um pouco mais de
paciência.
ENFERMEIRA - Parece que está correndo tudo bem, não,
doutor?
CYRO - (concordou) Vamos aumentar a dose de
antibiótico e conferir de hora em hora o ritmo cardíaco.
E DURANTE ALGUNS SEGUNDOS O CIRURGIÃO PRESCREVEU O TRATAMENTO
E OS CUIDADOS ESPECIAIS DEVIDOS AO DOENTE. LOGO APÓS, A ENFERMEIRA DEIXOU O
QUARTO.
OTTO ESTENDEU A MÃO, AINDA FRACA, E SEGUROU A DO MÉDICO. CYRO
VOLTOU-SE, ADMIRADO.
OTTO - Eu... lhe devo a vida, doutor!
CYRO OLHOU-O
FIXAMENTE. TODA UMA SÉRIE DE LEMBRANÇAS LHE PASSARAM PELA MENTE, COMO NUM FILME
DE CINEMA.
CYRO - Não especialmente a mim, Sr. Otto.
OTTO - De qualquer maneira eu lhe agradeço. E sei
ser agradecido... quando quero. Eu me sinto ligado a senhor por um elo muito
forte, que se chama vida. A minha vida, doutor. Estou muito comovido pelo fato
de estar vivo. É muito bom... a gente estar vivo! E eu quero ficar assim muito
tempo, ainda! Eu quero viver... eu quero. E o senhor tem de me ajudar!
CORTA PARA:
Baby e Inês
CENA 3 -
PALACETE DO COMENDADOR LIBERATO
- QUARTO DE INÊS - INTERIOR
- DIA
PELA PRIMEIRA VEZ INÊS TINHA RECEBIDO A VISITA DA MÃE E DO
IRMÃO, DANIEL, EMBORA ZORAIDA SE MOSTRASSE FRANCAMENTE DESPEITADA. A PRESENÇA
DE BABY CONTORNARA OS PROBLEMAS, MAS AOS OLHOS DE ROSA TUDO FICARA MUITO CLARO:
A FILHA VIVIA UMA VIDA INFERNAL, PRESA NUM PALÁCIO DOURADO!
DEPOIS DAS DESPEDIDAS, BABY CORRERA PARA SEU LADO.
INÊS - (irônica) Será que eu representei bem?
O MARIDO TIRAVA O PALETÓ E SE SENTAVA À BEIRA DA CAMA.
BABY - Do que está falando?
INÊS - Representei bem... o papel de mulher casada
feliz?
BABY - Por que a graça? Você não é feliz?
INÊS - Acha que eu sou?
BABY - Você tem o que quer, não?
INÊS - Acha que tenho?
BABY - (aborrecido) Acha... não acha, que onda é
essa?
INÊS - Fiz de tudo... pra que meu irmão pensasse que
eu tou feliz... pra não estragá teus plano.
BABY - Que bobajada você está dizendo, Inês!
INÊS - Eu falo... do apoio que meu irmão tem que te
dá... nas mina. Eu não quero que ele deixa de te dá o apoio. Então... não
contei nada... que você não liga pra mim... que a gente mal se vê. Que você
entra neste quarto quando te dá na bola... que me esquece o dia inteiro,
aqui... que beija outra mulher na minha frente (referia-se à noite em que Baby
voltara à casa com Tula, embriagados e se beijaram diante dos olhos agoniados
da esposa infeliz) ... que Tula te telefona o dia inteiro pra ir se encontrá
com ela, porque tá com dor de cotovelo e você serve pra aliviá o mal dela... ela
tá gamadona pelo Cesário... teu capataz! Nada disso eu contei pro meu irmão...
só pra não te estragá diante dele.
BABY - (levantou-se, amuado) Eu sabia que você ia
estragar tudo. Entrei aqui... e entrei com disposição de ficar com você...
INÊS - Pra mim num pensá que você tava fingindo na
frente do meu irmão e da mãe. Mas pode deixá, Leandro... num conto pra
ninguém... que nosso casamento... foi um tremendo erro. Pode deixá!
BABY - (apontando-lhe o dedo) Olhe... é você quem
não quer viver bem. O que eu não aguento é mulher chata!
INÊS - Tula não é chata? Hem? Me diga! Tula não é
chata?
BABY NÃO RESPONDEU. BATEU A PORTA COM VIOLENCIA E SE AFASTOU
APRESSADO. OS PASSOS PERDERAM-SE NA ESCADARIA DE ACESSO AO PAVIMENTO INFERIOR.
CORTA PARA:
CENA 4 - HOSPITAL -
QUARTO DE OTTO - INTERIOR
- DIA
JÁ SE TINHAM PASSADO 25 DIAS DA OPERAÇÃO. OTTO FÔRA REMOVIDO
PARA SEU ANTIGO QUARTO, ULTRAPASSADA A FASE PIOR.
NAQUELA MANHÃ, O PRÓPRIO DIRETOR DO HOSPITAL, DR. MAX, EM
COMPANHIA DA ENFERMEIRA-CHEFE, CUIDAVA DO PACIENTE.
OTTO - (com otimismo) Ainda bem que estou de novo
neste quarto. Aquele outro... podem apelidá-lo de quarto dos suplícios.
DR. MAX - Não é tanto assim, Sr. Otto!
OTTO - Só eu sei o que sofri... parece que paguei
por todos os meus pecados. Sondas e sondas por todos os orifícios do meu
corpo... nariz, boca... e aquela coisa horrível que me enfiavam no peito...
para retirar a secreção.
DR. MAX - Esqueça... já passou e o senhor está pronto
para outra.
DR. MAX ACABARA DE EXAMINAR O PACIENTE E CONSTATARA O
EXCELENTE ESTADO GERAL. TUDO FUNCIONANDO ÀS MIL MARAVILHAS NO ORGANISMO DO
ALEMÃO.
OTTO - (franziu a testa, antes de fazer a pergunta
que o deixava intrigado) O homem que me deu o coração era... jovem e bonito,
doutor?
A ENFERMEIRA OLHOU DISCRETAMENTE PARA O MÉDICO.
DR. MAX - Dona Dirce é quem o viu. Confesso que quem se
incumbiu de tudo foi o Dr. Cyro.
ENFERMEIRA - (assentiu, sorrindo meio sem graça) Era...
era jovem e bonito!
OTTO - (brincalhão) Por isso é que já estou apaixonado
por todas as enfermeiras deste hospital...
SORRIRAM TODOS.
ENFERMEIRA - Pelo menos o dono do coração devia ser um
sujeito bem humorado. Porque o senhor está com um humor fora do comum...
OTTO - Estou contente de estar vivo... Mas, não sei
bem se vale a pena estar vivo.
OS OLHOS AZUIS DE OTTO MULLER TORNAVAM A GANHAR LUMINOSIDADE.
A LUMINOSIDADE MALÉFICA DO HOMEM QUE TORTURAVA, MATAVA E FAZIA MAL A MEIO
MUNDO.
ENFERMEIRA - (dirigiu-se ao médico-diretor) A família
dele, toda, está esperando para entrar. Posso deixá-los?
DR. MAX - É a primeira vez que o vêem depois da
operação?
ENFERMEIRA - A primeira que conversam com ele. Que o veem
consciente.
DR. MAX - Deixe entrar... dois por vez... e previna
para que não o façam falar.
CORTA PARA:
CENA 5 -
HOSPITAL - CORREDOR
- INTERIOR - DIA
AFASTADA DE TODOS, QUASE IGNORADA PELOS QUE TRANSITAVAM PELO
CORREDOR, A VELHA NEGRA, GORDA, CABELOS GRISALHOS, ESPERAVA PACIENTEMENTE A
ABERTURA DA PORTA. VIU QUANDO A ENFERMEIRA SAIU DO QUARTO ONDE SE ACHAVA O
OPERADO. LEVANTOU-SE E PEGOU-A PELO BRAÇO, COM FORÇA SURPREENDENTE.
DIRCE - (voltou-se assustada) A senhora está
esperando... o quê?
DONA CONCEIÇÃO - Me dissero que o duente já tá recebendo
visita.
DIRCE - Sim. E daí?
DONA CONCEIÇÃO - Daí, moça... que eu quero vê ele!
DIRCE - (encarou a velha, admirada) A senhora?
DONA CONCEIÇÃO - (decidida) O Doutô Cyro me prometeu... que
quando ele tivesse melhó... eu podia vê ele.
DIRCE - É que... o Dr. Cyro... não está aí.
DONA CONCEIÇÃO - (suplicou, com as mãos postas) Dá um
jeitinho! Pelo amor de Deus... me deixa entrá... pra vê esse home. Pelo amor de
Deus!
CORTA PARA:
CENA 6 -
HOSPITAL - SALA DE ESPERA -
INTERIOR - NOITE
LIA RECONHECEU A VELHA E SUSPIROU FUNDO.
DONA CONCEIÇÃO EXPLICOU O MOTIVO DE SUA PRESENÇA ALI. QUERIA
APENAS VER O HOMEM EM CUJO PEITO PULSAVA O CORAÇÃO DO FILHO, DE QUEM MORRIA DE
SAUDADE. E AGORA LÁ ESTAVA ELA DIANTE DE OTTO MULLER. JÁ ERA NOITE E O QUARTO
ESTAVA ÀS ESCURAS. CONCEIÇÃO ENTROU, EMOCIONADA. O CORAÇÃO AOS PULOS.
APROXIMOU-SE DO LEITO DE OTTO MULLER, QUE DORMIA PROFUNDAMENTE. OLHOU-O
ENTERNECIDA À LUZ DO PEQUENO ABAJUR.
DONA CONCEIÇÃO - (falou baixinho como se orasse a Deus) Deixa
eu só... pegá no rosto dele, moça. Um pouquinho só... um pouquinho!
LIA - (ordenou, atemorizada) Não, Dona Conceição,
não!
OTTO RESPIRAVA FUNDO.
DONA CONCEIÇÃO - Eu tenho de fazê isso. Quero só senti... o
coração!
A VELHA MULHER COLOCOU DUAS MÃOS NEGRAS SOBRE O PEITO BRANCO
DO HOMEM QUE ODIAVA OS NEGROS. OS DE SUA RAÇA. COM ESPANTO, LIA OUVIU O
MURMÚRIO DA VELHA NEGRA.
DONA CONCEIÇÃO - Meu filho! Meu filho!
OTTO GEMEU E DESPERTOU, ESFREGANDO OS OLHOS AO MESMO TEMPO EM
QUE LIA EMPURRAVA A MULHER PARA FORA DO QUARTO, EM PENUMBRA. O DESPERTAR FÔRA
BREVE, INCONSCIENTE COMO NUM SONHO. OTTO VOLTOU A DORMIR SEGUNDOS DEPOIS, ENQUANTO LIA
ACARINHAVA-LHE O ROSTO E A CABEÇA.
FIM DO CAPÍTULO 55
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