Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira
CAPÍTULO 52
Participam deste
capítulo
Cyro -
Tarcísio Meira
Tula -
Lucia Alves
Cesário -
Carlos Eduardo Dolabela
Ricardo -
Edney Giovenazzi
Dr. Avelar - Álvaro Aguiar
Conceição - Zeni
Pereira
CENA
1 -
FLORIANÓPOLIS - VILA DOS MINEIROS -
PRAÇA - EXTERIOR
- NOITE
A NOITE COBRIA DE SOMBRAS TODA A REGIÃO DE VALONGO. OS
MINEIROS, EM SUAS CHOUPANAS, OU NAS CASAS DE MADEIRA ERGUIDAS PELA COMPANHIA,
PREPARAVAM-SE PARA O SONO REPARADOR.
DE REPENTE, A PORTA DO AMBULATÓRIO SE ABRIU E O JATO
DE LUZ QUEBROU A ESCURIDÃO. TULA SAIU A PASSOS APRESSADOS DO AMBULATÓRIO E
DIRIGIU-SE À BIROSCA DA PRACINHA. AVISTOU O HOMEM A QUEM PROCURAVA. CESÁRIO
DESVIOU O OLHAR, INDIFERENTE, FINGINDO NÃO TER RECONHECIDO A MOÇA. A FILHA DO
ENGENHEIRO DEFRONTOU-SE COM O CAPATAZ. HAVIA QUALQUER COISA DE AMEAÇADOR EM
SEUS OLHOS NEGROS. ÓDIO OU DESESPERO, TALVEZ.
TULA - (com as mãos nas cadeiras) É preciso pedir
audiência para falar com o grande capataz?
CESÁRIO - Olha aqui, ilustre e grande é a sua avó
(bebeu um gole de cerveja) Me deixa em paz!
TULA - (tocou-lhe o braço forte) Venha comigo de
carro. Preciso muito falar com você.
CESÁRIO - (voltou-se para o carro-esporte parado na
extremidade oposta da praça dos mineiros) Não quero entrar na geringonça do teu
pai. Se tem alguma coisa a me dizer, diga aqui mesmo. (voltou-lhe as costas,
enchendo o copo de cerveja) E rápido que eu estou com pressa.
ERA DEMAIS PARA A JOVEM AUDACIOSA E ALTIVA.
TULA - (falou com a voz embargada pelo ódio e pelo
amor que a consumia) Olha, seu... convencido de uma figa! O que você está
pensando? Que é alguma coisa na vida só porque conseguiu a porcaria de um posto
de capataz? Pois fique sabendo que eu te detesto! Eu quero te ver no fundo de
um poço! Quero que você morra!
CESÁRIO PERMANECIA INDIFERENTE, DISTANTE.
CESÁRIO - Terminou?
TULA - Não. Não terminei. Quero te dizer ainda que
se eu quiser... eu te domino como um cachorrinho. Você está fingindo... e muito
mal... que me odeia! No fundo... está louco pra se amarrar em mim!
(mudou o tom e se aproximou ainda mais) Vem comigo! A gente vai falar com meu
pai. Eu estou disposta a me casar com você.
CESÁRIO - (ironizou) Ah... você tá querendo casar
comigo, não é?
TULA - Estou! (confessou, apaixonada, olhos
semicerrados) Eu faço tudo o que você quiser... tudo! Me caso até amanhã, se
você está disposto!
CESÁRIO - Acontece, Dona Gertrudes... que agora eu não
te quero. Nem pintada. (recordava das atitudes hostis do pai da mulher que se
oferecia) Nem coberta de ouro em pó. Nem... nem rastejando... nem se
humilhando... Quero... é que você me esqueça, tá?
AFASTOU-SE PARA UM CANTO DISTANTE, ENQUANTO TULA
FERVIA DE ÓDIO E DE DESESPÊRO. SAIU CORRENDO DO INTERIOR DA BIROSCA.
O AUTOMÓVEL DERRAPOU AO FAZER A CURVA PARA ENTRAR NA
ESTRADA DE ACESSO À CIDADE. AS LÁGRIMAS CAÍAM-LHE INCONTIDAS.
APENAS OS RAIOS LUMINOSOS DOS FARÓIS ROMPIAM O NEGRUME
DA ESTRADA. O CARRO DESENVOLVIA UMA VELOCIDADE ALUCINANTE. E TULA MAL PÔDE
PRESSENTIR QUE O VULTO NEGRO NÃO TERIA TEMPO DE SE AFASTAR DA PISTA. O CARRO
PEGOU-O, LEVANTANDO-O COMO UM SACO DE PAPEL. E O CORPO, PASSANDO SOBRE A CAPOTA
ESCORREGADIA, ESPARRAMOU-SE NA ESTRADA ASFALTADA. ERA UM MONTE DE OSSOS
PARTIDOS E CARNES ENSANGUENTADAS, MAS RESPIRAVA AINDA; NOS ESTERTORES DA MORTE.
CORTA PARA:
CENA
2 -
VILA DOS MINEIROS - ESTRADA
- EXTERIOR -
NOITE
O GRUPO OLHAVA CURIOSO O HOMEM ATROPELADO. UM DOS
MINEIROS RECONHECEU-O.
MINEIRO - Virge mãe! É o Vicentão! Ele é detonador na
Panorama, essa mina que tão abrindo, agora, perto daqui. Um negro e tanto.
Amigo, trabalhador!
CESÁRIO - (ordenou, percebendo que o acidentado ainda
respirava) Corre, vai avisar à família dele! Eu vou correndo buscar socorro!
CORTA PARA:
CENA
3 -
FLORIANÓPOLIS - HOSPITAL
- SALA DE CIRURGIA -
INTERIOR - DIA
DR. CYRO VALDEZ OLHAVA O TRAÇADO DO ELETROCARDIOGRAMA.
AO LADO DA EQUIPE DE CIRURGIÕES QUE CHEFIAVA. ESTENDIDO SOBRE A MESA O CORPO DO
NEGRO ERA UMA MASSA DISFORME. O MÉDICO EMITIU O PARECER DEFINITIVO.
CYRO - Ausência de qualquer onde de estímulo
cerebral.
DR. AVELAR
- E a imunologia diz que o
coração é de tipo semelhante ao de Otto Muller.
OS CIRURGIÕES ENTREOLHARAM-SE.
CYRO - A mãe dele foi chamada?
CORTA PARA:
Tula e Cesário
CENA
4 -
HOSPITAL - SALA DE ESPERA -
INTERIOR - DIA
EM POUCOS MINUTOS A VELHA CONCEIÇÃO, NEGRA JÁ IDOSA,
COM O ANDAR CANSADO E CORPO BALOFO, ENTRAVA NO HOSPITAL. NA SALA DE ESPERA,
CYRO FOI AO SEU ENCONTRO.
CONCEIÇÃO
- Qué dizê, douto... que ele tá
morto? Meu filho tá morto?
CYRO - Eu quero que a senhora entenda bem, o coração
dele ainda bate, ele era um homem forte... mas o cérebro não possui mais nenhum
estímulo... isto é... está morto. Clìnicamente morto, minha senhora (segurava
carinhosamente as mãos da pobre negra) Ele está cerebralmente morto. A senhora
entende?
CONCEIÇÃO
- (entre soluços) E isso num tem
jeito?
CYRO - Infelizmente, não. Se houvesse a mais remota
possibilidade de salvação, eu não lhe pediria o que estou pedindo.
CONCEIÇÃO
- Eu não tou entendendo o que o
sinhô qué de mim... o sinhô podia me dizê mais claro, doutô?
CYRO - É o seguinte, Dona Conceição. Há um homem,
cuja vida pode ser salva, graças ao coração de seu filho. Se a senhora der
permissão, neste momento, nós faremos um transplante do coração dele para o
peito daquele homem (apontou para Otto Muller deitado na
cama de ferro) e a senhora terá salvo uma vida.
CONCEIÇÃO
- o sinhô qué tirá o coração do
meu filho?
CYRO - Isso mesmo.
CONCEIÇÃO
- Mas isso é maldade, doutô!
CYRO - pelo contrário, Dona Conceição. Será um gesto
magnífico de sua parte. A senhora vai salvar a vida de um homem e o coração de
seu filho vai continuar pulsando no peito de Otto Muller.
CONCEIÇÃO
- E se eu não consenti?
CYRO - Bem... se a senhora se opuser... este homem
vai morrer. E o seu filho também. Então, Dona Conceição, que é que a senhora
resolve?
ALGUM TEMPO DEPOIS, FINALMENTE, CYRO VALDEZ CONSEGUIRA
CONVENCER A MULHER. DONA CONCEIÇÃO COMPREENDERA A INUTULIDADE DE SE MANTER NUMA
NEGATIVA IRREVOGÁVEL. SEU FILHO ESTAVA MESMO MORTO E NADA MAIS RESTAVA DELE A
NÃO SER A SAUDADE DE SUA PRESENÇA NA TERRA.
NO CONSULTÓRIO, CYRO COLOCOU O DOCUMENTO, EM PAPEL
TIMBRADO SOBRE A MESA DE AÇO.
CYRO - (apontou com o dedo) Basta que a senhora
assine aqui embaixo.
CORTA PARA:
CENA
5 -
HOSPITAL - SALA DE CIRURGIA -
INTERIOR - DIA
A SALA DE CIRURGIA, ILUMINADA, AINDA SE ACHAVA VAZIA.
AGORA OS ENFERMEIROS CHEGAVAM E COMEÇAVAM OS PREPARATIVOS PARA A GRANDE
INTERVENÇÃO. OS INSTRUMENTOS ESTERILIZADOS, PANOS, ALGODÃO, AMPOLAS DE INJEÇÃO.
TUDO EM ORDEM. AO LADO, O APARELHAMENTO DE CONTROLE.
O CORPO DE OTTO MULLER ENTROU NUM CARRINHO, ENVOLTO
NUMA BATA BRANCA, ENQUANTO O DO NEGRO APARECIA SEGUNDOS DEPOIS. FICARAM LADO A
LADO. DE UMA MACA PENDENDO A MÃO BRANCA DE OTTO MULLER. DA OUTRA, A MÃO NEGRA,
COM FUNDOS TALHOS SUTURADOS.
CYRO VALDEZ OLHOU PARA O ANESTESISTA E AGUARDOU A
ORDEM. OTTO DORMIA PROFUNDAMENTE. MAS PODERIA ACORDAR PARA A VIDA. VICENTÃO
DEIXARA DE EXISTIR HÁ VÁRIAS HORAS. E NÃO ACORDARIA PARA NADA.
CORTA PARA:
CENA
6 -
FLORIANÓPOLIS - CASA DE RICARDO -
SALA - INTERIOR
- DIA
RICARDO ATIROU A CHAVE DO CARRO SOBRE A MESA E DEPAROU
COM O OLHAR AFLITO DA FILHA.
TULA - Viu o seu carro?
O ENGENHEIRO FRANZIU A TESTA, PREOCUPADO. SABIA QUE
TULA NÃO TINHA DORMIDO DURANTE A NOITE PASSADA. OUVIRA SEUS PASSOS INCESSANTES,
DENTRO DO QUARTO, DESDE AS PRIMEIRAS HORAS DA MADRUGADA.
RICARDO - Que foi que houve?
TULA - (falou baixo, com a voz arrancada
sofridamente do fundo do peito) Eu matei um homem! Apenas isso. Eu matei um
homem! Está me ouvindo, pai? Eu matei um homem!
A JOVEM CRISPAVA AS MÃOS, ARRANHANDO COM AS UNHAS A
FACE MACIA. RICARDO CORREU ATÉ ELA, ABRAÇANDO-A, COMOVIDO.
RICARDO - Calma, Tula! Não fique assim, escute!
TULA - Matei! Matei! (gritou, desesperada) Ficou lá,
estendido na estrada, e eu fugi!
RICARDO - Ele ficou lá... onde?
TULA - Na estrada que leva á vila dos mineiros.
O ENGENHEIRO LEMBROU-SE DA CONVERSA OUVIDA DURANTE O
EXPEDIENTE MATINAL, SOBRE O ATROPELAMENTO E MORTE DE UM DOS MINEIROS. UM NEGRO.
RICARDO - (nervoso) Alguém a viu?
TULA - Não. A estrada estava deserta. Mas, o homem
morreu, eu vi! A cabeça dele... daquele jeito... horrível... espatifada! Não
podia ter escapado! Ele morreu!
PROCURANDO CONTROLAR OS PRÓPRIOS NERVOS ABALADOS, O
ENGENHEIRO SENTOU-SE COM A FILHA NO SOFÁ.
RICARDO - Calma, Tula! Calma! Você não devia ter
fugido... mas pra tudo há um jeito. Eu assumo a responsabilidade. Não diga nada
a ninguém... não fale sobre o acidente com pessoa alguma, a não ser comigo e
com sua mãe. (levantou-se, com as mãos trêmulas; sentia as pernas dançarem
dentro das calças) Eu vou até a cidade verificar como andam as coisas. Eu não
vou deixar que nada lhe aconteça.
FIM DO
CAPÍTULO 52