domingo, 31 de agosto de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 52


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 52

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Tula  -  Lucia Alves
Cesário  -  Carlos Eduardo Dolabela
Ricardo  -  Edney Giovenazzi
Dr. Avelar  - Álvaro Aguiar
Conceição  -  Zeni Pereira


CENA 1  -  FLORIANÓPOLIS  -  VILA DOS MINEIROS  -  PRAÇA  -  EXTERIOR  -  NOITE

A NOITE COBRIA DE SOMBRAS TODA A REGIÃO DE VALONGO. OS MINEIROS, EM SUAS CHOUPANAS, OU NAS CASAS DE MADEIRA ERGUIDAS PELA COMPANHIA, PREPARAVAM-SE PARA O SONO REPARADOR.

DE REPENTE, A PORTA DO AMBULATÓRIO SE ABRIU E O JATO DE LUZ QUEBROU A ESCURIDÃO. TULA SAIU A PASSOS APRESSADOS DO AMBULATÓRIO E DIRIGIU-SE À BIROSCA DA PRACINHA. AVISTOU O HOMEM A QUEM PROCURAVA. CESÁRIO DESVIOU O OLHAR, INDIFERENTE, FINGINDO NÃO TER RECONHECIDO A MOÇA. A FILHA DO ENGENHEIRO DEFRONTOU-SE COM O CAPATAZ. HAVIA QUALQUER COISA DE AMEAÇADOR EM SEUS OLHOS NEGROS. ÓDIO OU DESESPERO, TALVEZ.

TULA  -  (com as mãos nas cadeiras) É preciso pedir audiência para falar com o grande capataz?

CESÁRIO  -  Olha aqui, ilustre e grande é a sua avó (bebeu um gole de cerveja) Me deixa em paz!

TULA  -   (tocou-lhe o braço forte) Venha comigo de carro. Preciso muito falar com você.

CESÁRIO  -  (voltou-se para o carro-esporte parado na extremidade oposta da praça dos mineiros) Não quero entrar na geringonça do teu pai. Se tem alguma coisa a me dizer, diga aqui mesmo. (voltou-lhe as costas, enchendo o copo de cerveja) E rápido que eu estou com pressa.

ERA DEMAIS PARA A JOVEM AUDACIOSA E ALTIVA.

TULA  -  (falou com a voz embargada pelo ódio e pelo amor que a consumia) Olha, seu... convencido de uma figa! O que você está pensando? Que é alguma coisa na vida só porque conseguiu a porcaria de um posto de capataz? Pois fique sabendo que eu te detesto! Eu quero te ver no fundo de um poço! Quero que você morra!

CESÁRIO PERMANECIA INDIFERENTE, DISTANTE.

CESÁRIO  -  Terminou?

TULA  -  Não. Não terminei. Quero te dizer ainda que se eu quiser... eu te domino como um cachorrinho. Você está fingindo... e muito mal... que me odeia! No fundo... está louco pra se amarrar em mim! (mudou o tom e se aproximou ainda mais) Vem comigo! A gente vai falar com meu pai. Eu estou disposta a me casar com você.

CESÁRIO  -  (ironizou) Ah... você tá querendo casar comigo, não é?

TULA  -  Estou! (confessou, apaixonada, olhos semicerrados) Eu faço tudo o que você quiser... tudo! Me caso até amanhã, se você está disposto!

CESÁRIO  -  Acontece, Dona Gertrudes... que agora eu não te quero. Nem pintada. (recordava das atitudes hostis do pai da mulher que se oferecia) Nem coberta de ouro em pó. Nem... nem rastejando... nem se humilhando... Quero... é que você me esqueça, tá?

AFASTOU-SE PARA UM CANTO DISTANTE, ENQUANTO TULA FERVIA DE ÓDIO E DE DESESPÊRO. SAIU CORRENDO DO INTERIOR DA BIROSCA.

O AUTOMÓVEL DERRAPOU AO FAZER A CURVA PARA ENTRAR NA ESTRADA DE ACESSO À CIDADE. AS LÁGRIMAS CAÍAM-LHE INCONTIDAS.

APENAS OS RAIOS LUMINOSOS DOS FARÓIS ROMPIAM O NEGRUME DA ESTRADA. O CARRO DESENVOLVIA UMA VELOCIDADE ALUCINANTE. E TULA MAL PÔDE PRESSENTIR QUE O VULTO NEGRO NÃO TERIA TEMPO DE SE AFASTAR DA PISTA. O CARRO PEGOU-O, LEVANTANDO-O COMO UM SACO DE PAPEL. E O CORPO, PASSANDO SOBRE A CAPOTA ESCORREGADIA, ESPARRAMOU-SE NA ESTRADA ASFALTADA. ERA UM MONTE DE OSSOS PARTIDOS E CARNES ENSANGUENTADAS, MAS RESPIRAVA AINDA; NOS ESTERTORES DA MORTE.

CORTA PARA:

CENA 2  -  VILA DOS MINEIROS  -  ESTRADA  -  EXTERIOR  -  NOITE

O GRUPO OLHAVA CURIOSO O HOMEM ATROPELADO. UM DOS MINEIROS RECONHECEU-O.

MINEIRO  -  Virge mãe! É o Vicentão! Ele é detonador na Panorama, essa mina que tão abrindo, agora, perto daqui. Um negro e tanto. Amigo, trabalhador!

CESÁRIO  -  (ordenou, percebendo que o acidentado ainda respirava) Corre, vai avisar à família dele! Eu vou correndo buscar socorro!

CORTA PARA:

CENA 3  -  FLORIANÓPOLIS  -  HOSPITAL  -  SALA DE CIRURGIA  -  INTERIOR  -  DIA

DR. CYRO VALDEZ OLHAVA O TRAÇADO DO ELETROCARDIOGRAMA. AO LADO DA EQUIPE DE CIRURGIÕES QUE CHEFIAVA. ESTENDIDO SOBRE A MESA O CORPO DO NEGRO ERA UMA MASSA DISFORME. O MÉDICO EMITIU O PARECER DEFINITIVO.

CYRO  -  Ausência de qualquer onde de estímulo cerebral.

DR. AVELAR  -  E a imunologia diz que o coração é de tipo semelhante ao de Otto Muller.

OS CIRURGIÕES ENTREOLHARAM-SE.

CYRO  -  A mãe dele foi chamada?

CORTA PARA:
Tula e Cesário

CENA 4  -  HOSPITAL  -  SALA DE ESPERA  -  INTERIOR  -  DIA

EM POUCOS MINUTOS A VELHA CONCEIÇÃO, NEGRA JÁ IDOSA, COM O ANDAR CANSADO E CORPO BALOFO, ENTRAVA NO HOSPITAL. NA SALA DE ESPERA, CYRO FOI AO SEU ENCONTRO.

CONCEIÇÃO  -  Qué dizê, douto... que ele tá morto? Meu filho tá morto?

CYRO  -  Eu quero que a senhora entenda bem, o coração dele ainda bate, ele era um homem forte... mas o cérebro não possui mais nenhum estímulo... isto é... está morto. Clìnicamente morto, minha senhora (segurava carinhosamente as mãos da pobre negra) Ele está cerebralmente morto. A senhora entende?

CONCEIÇÃO  -  (entre soluços) E isso num tem jeito?

CYRO  -  Infelizmente, não. Se houvesse a mais remota possibilidade de salvação, eu não lhe pediria o que estou pedindo.

CONCEIÇÃO  -  Eu não tou entendendo o que o sinhô qué de mim... o sinhô podia me dizê mais claro, doutô?

CYRO  -  É o seguinte, Dona Conceição. Há um homem, cuja vida pode ser salva, graças ao coração de seu filho. Se a senhora der permissão, neste momento, nós faremos um transplante do coração dele para o peito daquele homem (apontou para Otto Muller deitado na cama de ferro) e a senhora terá salvo uma vida.

CONCEIÇÃO  -  o sinhô qué tirá o coração do meu filho?

CYRO  -  Isso mesmo.

CONCEIÇÃO  -  Mas isso é maldade, doutô!

CYRO  -  pelo contrário, Dona Conceição. Será um gesto magnífico de sua parte. A senhora vai salvar a vida de um homem e o coração de seu filho vai continuar pulsando no peito de Otto Muller.

CONCEIÇÃO  -  E se eu não consenti?

CYRO  -  Bem... se a senhora se opuser... este homem vai morrer. E o seu filho também. Então, Dona Conceição, que é que a senhora resolve?

ALGUM TEMPO DEPOIS, FINALMENTE, CYRO VALDEZ CONSEGUIRA CONVENCER A MULHER. DONA CONCEIÇÃO COMPREENDERA A INUTULIDADE DE SE MANTER NUMA NEGATIVA IRREVOGÁVEL. SEU FILHO ESTAVA MESMO MORTO E NADA MAIS RESTAVA DELE A NÃO SER A SAUDADE DE SUA PRESENÇA NA TERRA.

NO CONSULTÓRIO, CYRO COLOCOU O DOCUMENTO, EM PAPEL TIMBRADO SOBRE A MESA DE AÇO.

CYRO  -  (apontou com o dedo) Basta que a senhora assine aqui embaixo.

CORTA PARA:

CENA 5  -  HOSPITAL  -  SALA DE CIRURGIA  -  INTERIOR  -  DIA

A SALA DE CIRURGIA, ILUMINADA, AINDA SE ACHAVA VAZIA. AGORA OS ENFERMEIROS CHEGAVAM E COMEÇAVAM OS PREPARATIVOS PARA A GRANDE INTERVENÇÃO. OS INSTRUMENTOS ESTERILIZADOS, PANOS, ALGODÃO, AMPOLAS DE INJEÇÃO. TUDO EM ORDEM. AO LADO, O APARELHAMENTO DE CONTROLE.

O CORPO DE OTTO MULLER ENTROU NUM CARRINHO, ENVOLTO NUMA BATA BRANCA, ENQUANTO O DO NEGRO APARECIA SEGUNDOS DEPOIS. FICARAM LADO A LADO. DE UMA MACA PENDENDO A MÃO BRANCA DE OTTO MULLER. DA OUTRA, A MÃO NEGRA, COM FUNDOS TALHOS SUTURADOS.

CYRO VALDEZ OLHOU PARA O ANESTESISTA E AGUARDOU A ORDEM. OTTO DORMIA PROFUNDAMENTE. MAS PODERIA ACORDAR PARA A VIDA. VICENTÃO DEIXARA DE EXISTIR HÁ VÁRIAS HORAS. E NÃO ACORDARIA PARA NADA.

CORTA PARA:

CENA 6  -  FLORIANÓPOLIS  -  CASA DE RICARDO  -  SALA  -  INTERIOR  -  DIA 

RICARDO ATIROU A CHAVE DO CARRO SOBRE A MESA E DEPAROU COM O OLHAR AFLITO DA FILHA.

TULA  -  Viu o seu carro?

O ENGENHEIRO FRANZIU A TESTA, PREOCUPADO. SABIA QUE TULA NÃO TINHA DORMIDO DURANTE A NOITE PASSADA. OUVIRA SEUS PASSOS INCESSANTES, DENTRO DO QUARTO, DESDE AS PRIMEIRAS HORAS DA MADRUGADA.

RICARDO  -  Que foi que houve?

TULA  -  (falou baixo, com a voz arrancada sofridamente do fundo do peito) Eu matei um homem! Apenas isso. Eu matei um homem! Está me ouvindo, pai? Eu matei um homem!

A JOVEM CRISPAVA AS MÃOS, ARRANHANDO COM AS UNHAS A FACE MACIA. RICARDO CORREU ATÉ ELA, ABRAÇANDO-A, COMOVIDO.

RICARDO  -  Calma, Tula! Não fique assim, escute!

TULA  -  Matei! Matei! (gritou, desesperada) Ficou lá, estendido na estrada, e eu fugi!

RICARDO  -  Ele ficou lá... onde?

TULA  -  Na estrada que leva á vila dos mineiros.

O ENGENHEIRO LEMBROU-SE DA CONVERSA OUVIDA DURANTE O EXPEDIENTE MATINAL, SOBRE O ATROPELAMENTO E MORTE DE UM DOS MINEIROS. UM NEGRO.

RICARDO  -  (nervoso) Alguém a viu?

TULA  -  Não. A estrada estava deserta. Mas, o homem morreu, eu vi! A cabeça dele... daquele jeito... horrível... espatifada! Não podia ter escapado! Ele morreu!

PROCURANDO CONTROLAR OS PRÓPRIOS NERVOS ABALADOS, O ENGENHEIRO SENTOU-SE COM A FILHA NO SOFÁ.

RICARDO  -  Calma, Tula! Calma! Você não devia ter fugido... mas pra tudo há um jeito. Eu assumo a responsabilidade. Não diga nada a ninguém... não fale sobre o acidente com pessoa alguma, a não ser comigo e com sua mãe. (levantou-se, com as mãos trêmulas; sentia as pernas dançarem dentro das calças) Eu vou até a cidade verificar como andam as coisas. Eu não vou deixar que nada lhe aconteça.

FIM DO CAPÍTULO 52




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