Novela de Janete Clair
Adaptação de Toni Figueira
CAPÍTULO 105
Participam deste
capítulo
Baby - Claudio Cavalcanti
Inês -
Betty Faria
Daniel - Paulo Araújo
Pé-na-Cova -
Antonio Pitanga
Delegado -
Vinicius Salvatori
Cabo Faria
Cesário -
Carlos Eduardo Dolabella
Júlia - Ida
Gomes
CENA 1 -
CLAREIRA - EXTERIOR
- DIA
BABY REUNIU OS HOMENS NUMA CLAREIRA ENTRE DOIS OUTEIROS A
UMAS DUAS LÉGUAS DO LITORAL. DIVERSOS DOS COMPANHEIROS APRESENTAVAM CURATIVOS
NA FACE, BRAÇOS, PERNAS E TÓRAX.
INÊS LIMPAVA UM RIFLE COM UM PEDAÇO DE FLANELA AMARELA.
DEPOIS DE PERCORRER AS IMEDIAÇÕES COM OLHOS ATENTOS, BABY PEDIU AO GRUPO PARA
SE JUNTAR UM POUCO MAIS. ERA DIA. MAIS OU MENOS QUATRO E QUARENTA DA TARDE.
BABY - Olha, pessoal, o negócio é o seguinte.
Estamos proibidos até de ir a Porto Azul. Não podemos mais entrar na cidade.
DANIEL - Estamos mesmo. Minha Luana tentou ir até lá
pra buscá remédio de curativo e num deixaro ela passá.
PÉ-NA-COVA - (admirado) Até as mulhé eles qué impedi de
passá?
BABY - Exato. Até nossas mulheres. Vocês acham que a
gente pode ficar quieto depois disso?
HOMENS - (a uma só voz) Claro que não!
INÊS - (pulou, imitando um gangster, girando um rifle de um lado para o outro) Legal! Legal!
Temos de mandar brasa, rapaziada!
OS HOMENS RIRAM-SE COM A BRINCADEIRA DA MULHER DO CHEFE. BABY
PROCUROU NÃO CONDICIONAR O GRUPO A INFANTILIDADES.
BABY - Que é isso, Inês?
INÊS - Ué... tou animando os guris!
BABY PUXOU A ARMA E LEVOU A ESPOSA PARA UM CANTO ENTRE AS
FOLHAGENS.
BABY - (dirigiu-se novamente aos homens) O que eu
quero dizer é que não podemos nos conformar em acatar esta ordem estúpida da
Justiça. Não tivemos sorte da primeira vez, mas vamos ter da segunda. Eu jurei
a mim mesmo que vou entrar naquela cidade para tomar conta das casas, a
qualquer preço!
INÊS - Falou, falou! A gente entra e pum! Pum! Pum!
Mata todo mundo! Dá tiro em tudo quanto é policial!
BABY - (explodiu, zangado) Quer calar a boca e ficar
quieta? Você pensa que eu estou brincando?
INÊS - (replicou com violência) Eu também não,
Leandro!
DANIEL - Tu tá gozando a desgraça da gente, Inês?
INÊS - Não, não estou gozando ninguém! Estou
falando... falando como mulher de bandido, ora!
OS HOMENS ENTREOLHARAM-SE, AFLITOS.
BABY - (desarvorado) Mulher de bandido? E quem é
bandido?
INÊS - Você! Meu irmão! Pé-na-Cova! Todo mundo! Você
está transformando todos os seus companheiros em bandidos. Em assaltantes de
cidade!
BABY - Não diga asneiras!
DANIEL - (berrou) A gente tá lutando por uma causa
justa!
INÊS - Há varias maneiras de lutar, sem ter uma arma
na mão!
BABY - Nós estamos reagindo a uma agressão!
INÊS - Estão dando àquela gente o direito de tratar
vocês como assaltantes. Será que não perceberam isso até agora? Vocês viraram
mau elemento?
BABY - Porque eles quiseram assim!
INÊS - E vocês reagiram exatamente como eles
queriam! Pra serem afastados a bala, como bandidos!
DANIEL - É melhor mulher num se metê!
PÉ-NA-COVA - É isso mesmo! Mulhé só atrapalha!
DANIEL - (segurando-a pelo braço) Vai embora, Inês!
INÊS - (livrou-se de Daniel e colocou ambas as mãos
nas cadeiras, em atitude de valentona) Tá bem! Eu vou, gente! Eu vou, porque já
disse o que tinha de dizê!
JOGOU A ARMA COM RAIVA NO CAPINZAL QUE CIRCUNDAVA A CLAREIRA
E SAIU A PASSOS ACELERADOS. BABY AGACHOU-SE E RECOLHEU O RIFLE, ALISANDO-LHE A
CORONHA.
DEMOROU-SE UM POUCO ANTES DE VOLTAR A FALAR. PARECIA QUE
ALGUMA COISA O ATORMENTAVA AGORA.
BABY - Talvez... ela tenha razão, turma! Talvez...
eu esteja levando vocês para um caminho errado...
PÉ-NA-COVA - Ninguém tá levando ninguém, chefe. Nós sabemo
o que tamo fazendo.
BABY - Vocês estão dispostos, mesmo que as
consequências sejam as que ela acabou de dizer?
DANIEL - Mesmo assim.
BABY COMEÇOU A RELATAR O PLANO QUE TINHA ARQUITETADO
DEMORADAMENTE.
BABY - Muito simples. A gente...
CORTA PARA:
CENA 2
- PORTO AZUL -
DELEGACIA - INTERIOR
- DIA
CABO FARIA PEDIU LICENÇA AO DELEGADO, ENTROU NA PEQUENA E MAL
MOBILIADA SALA E ENTREGOU O ENVELOPE PARDO AO CHEFE DO DESTACAMENTO.
CABO FARIA - E então, doutor? O que foi que o dentista
revelou?
O DELEGADO MOREIRA PASSEOU OS OLHOS PELO PAPEL COM VAGAR,
FRANZINDO A TESTA.
DELEGADO - Já tenho o resultado definitivo. Agora, não
há mais dúvidas... aqui está o parecer do dentista!
CABO FARIA - (impacientava-se) O corpo é de Dona Júlia ou
não é?
CENA 3 -
APARTAMENTO DE CESÁRIO - QUARTO
- INTERIOR -
NOITE
CESÁRIO PREPARAVA-SE PARA DORMIR, ESTICANDO-SE POR SOBRE A
COLCHA LIMPA E BEM PASSADA. SABIA QUE CLARA, SUA MÃE, TINHA IDO VISITAR UMA
PARENTA NA CIDADE VIZINHA, MAS PODERIA CHEGAR A QUALQUER INSTANTE. OUVIU QUANDO
A PORTA RANGEU NOS GONZOS E BATEU, COM RUÍDO, AO ENCAIXAR-SE DE VOLTA AOS
UMBRAIS.
CESÁRIO - Mãe... você voltou?
COMO NINGUÉM RESPONDESSE, CESÁRIO LEVANTOU-SE, VESTIU UM
ROUPÃO E SE ENCAMINHOU PARA A SALA. ESPANTOU-SE AO VERIFICAR QUE TODAS AS LUZES
ESTAVAM APAGADAS NO INTERIOR DO APARTAMENTO. LEMBRAVA-SE DE TER DEIXADO ACESAS
AS LUZES DA SALA E DO CORREDOR. JULGOU QUE A MÃE TIVESSE VOLTADO E ESTIVESSE NA
COZINHA.
CESÁRIO - Mãe... trouxe o meu jantar?
DE UM CANTO DA SALA, ÀS ESCURAS, A VOZ RESPONDEU ÀS
INTERROGAÇÕES DO HOMEM.
VOZ DE MULHER - (off) Não é sua mãe. Sou eu, meu amor! Não me
esperava?
CESÁRIO ESTREMECEU E PROCUROU UM LUGAR ONDE PUDESSE
SENTAR-SE. RECONHECERA A VOZ DA MULHER A QUEM MATARA.
ERA JÚLIA.
CESÁRIO TREMIA DA CABEÇA AOS PÉS, QUERENDO FUGIR À VISÃO DA
MULHER.
CESÁRIO - Como... é que tu tá aqui... se acharo teu
corpo, desgraçada? (berrou, histérico) Se acharo teu corpo no fundo da lagoa?
TENTOU ABRIR A PORTA E AFASTAR-SE DA CASA. A PORTA TINHA SIDO
FECHADA À CHAVE E JÚLIA GARGALHAVA SINISTRAMENTE.
JÚLIA - Acharam mesmo? Eu vi quando me retiraram do
fundo das águas. Tiraram o corpo arrasado. Coitada de mim!
CESÁRIO - (forçava a porta com os ombros) Abre essa
porta! Abre essa porta! Não quero ver tua cara! Eu vou sumir daqui!
TENTOU FORÇAR OUTRA PORTA, LATERAL.
JÚLIA - Não adianta, está tudo trancado...
O BANDIDO DESESPERAVA-SE. A CABEÇA LHE PARECIA UM PEDAÇO DE
PEDRA E OS MEMBROS NÃO ACUDIAM AO SEU CHAMAMENTO.
CESÁRIO - Abra aqui! Gente! Socorro! Me prenderam aqui!
Socorro!
JÚLIA GARGALHAVA CADA VEZ COM MAIOR INTENSIDADE, ANTE O
DESESPERO E A COVARDIA DO MARIDO.
CESÁRIO VOLTOU ARFANTE, AJOELHANDO-SE DIANTE DELA.
CESÁRIO - Julinha! Julinha! Tenha dó... de onde você
tá, me deixa! Me deixa em paz! Eu num queria que tu morresse! Juro!
JÚLIA - Coitadinho! Não queria que eu morresse... mas
só virou o barco pra me afogar! Não foi?
CESÁRIO - (desculpou-se, acovardado) Não tinha culpa se
tu não sabia nadar!
JÚLIA - Pois é. Coitado! Não tem culpa de nada! Viu
eu me afogar... sem levantar um dedo para me salvar! Não teve mesmo culpa de
nada!
CESÁRIO - Eu não podia fazer nada, Júlia. Mas diga o
que tu quer. Diga e eu te dou pra tu me deixá em paz, desgraçada!
O VULTO PERMANECIA ENVOLTO NA PENUMBRA DA SALA, QUEBRADA
APENAS PELA RÉSTEA DE LUZ QUE CHEGAVA AO QUARTO DE CESÁRIO.
JÚLIA VOLTOU A FALAR, EMPRESTANDO À VOZ UMA RESSONÂNCIA
FASTASMAGÓRICA. O HOMEM TREMIA.
JÚLIA - Eu quero sim, Cesário... quero que você me
faça uma coisa... é uma coisa muito importante para mim. Uma coisa que eu
desejo muito.
CESÁRIO - O quê? Diga que eu faço!
JÚLIA - Quero... um beijo! Um beijo igualzinho
àqueles que você dava em Tula... não os que você dava em mim. Eram sempre
fingidos... sem graça. Quero os que você dava em Tula... e depois quando
obrigava Dona Ester, coitada! Aqueles sim, é que eram beijos! Pois eu quero ser
beijada, assim!
CESÁRIO ENGOLIU EM SECO. COMO BEIJAR UMA MORTA?
CESÁRIO - Só... só isso? Só... um beijo? Mais nada?
JÚLIA - Só. Pra eu poder encontrar sossego. Paz. Eu
não posso continuar com esse desejo frustrado. Você nunca mei beijou daquele
jeito! Ah, é muito triste a gente vagar no espaço, desejando ser beijada!
CESÁRIO - (levantou-se) Tá bão, Júlia. Se é só o beijo
mesmo...
A MULHER ABRIU OS BRAÇOS E SORRIU. LEMBRAVA UMA VESTAL PRONTA
PARA O SACRIFÍCIO COM O VESTIDO BRANCO, DE MANGAS COMPRIDAS, ESVOAÇANTES.
CESÁRIO A ENCAROU, APAVORADO.
TENTOU DAR UM PASSO, MAS NÃO MOVEU UM MÚSCULO DAS PERNAS.
CESÁRIO - (gritou, tenso) Não, eu não posso! Não posso,
Julinha! Peça outra coisa... peça o que você quiser... velas, dúzias de velas,
missas, orações... eu dou tudo. Faço todo o sacrifício, mas não aguento beijar
um fantasma!
JÚLIA - Pois muito bem. Eu vou pedir outra coisa!
CESÁRIO - Pede! Pede pra acabar logo essa agonia! Eu
num aguento mais, viu? Num aguento mesmo!
JÚLIA - Certo! Olhe pra mim. Eu vou te dizer o que
quero. (a voz lhe saiu grave, pausada) Eu quero sua vida!
CESÁRIO - (sentiu a sala rodar) O quê?
JÚLIA - Sua vida! Nem mais, nem menos. Eu quero que
você morra... como eu morri. Em pânico... em desespero... sem ter uma mão que
me ajudasse a me salvar...
CESÁRIO - (conseguiu se dominar por um momento) Se tu é
fantasma mesmo, é um fantasma doido, varrido! Porque eu não estou disposto a me
matar por sua causa, não!
JÚLIA - Nem mesmo depois de saber que o delegado vem
aí pra te prender? Depois do reconhecimento do meu corpo... vão pedir a tua
prisão. Ou você não sabe que o Delegado Moreira tem provas que podem levá-lo ao
xadrez? E testemunhas de que você queria que eu morresse? Você fez muito mal em
me mandar assinar aqueles cheques em branco, meu amor. Sua intenção ficou bem
clara. E o pedido de casamento a Dona Ester logo depois da minha morte? Tudo
isso foram erros que você cometeu e que permitem ao delegado pedir sua prisão!
Aliás... eles não vão demorar a chegar aqui... o dentista deu o laudo...
levaram ao novo promotor... eu acho que você está mesmo perdido, Cesário...
CESÁRIO - Eu... eu vou fugir antes que eles apareçam!
JÚLIA - Pois fuja, meu amor! Fuja mesmo, viu?
CESÁRIO - Me dá a chave da minha porta!
JÚLIA - Eu não sei da sua chave!
CESÁRIO TENTOU ABRIR A PORTA. JÚLIA RIA DA IMPOTENCIA DO
HOMEM. COMO UM LOUCO, O ASSASSINO ATIROU-SE DE OMBROS CONTRA A MADEIRA. A PORTA
NÃO CEDEU UM MILÍMETRO. CESÁRIO OLHOU A JANELA.
JÚLIA - A não ser... que você tente escapar por aí...
São só três andares... você pode ir pela marquise... alcançar o outro lado do
prédio... talvez consiga descer... mas também, qualquer deslize... e você se
esborracha lá embaixo!
JÚLIA RIA, GOSTOSAMENTE. CESÁRIO COMEÇOU A PULAR A JANELA,
CUIDADOSAMENTE. OLHOU MAIS UMA VEZ PARA BAIXO. MEDIU O PERIGO. E RETESOU OS
MÚSCULOS. TINHA DE ESCAPAR ANTES DA CHEGADA DOS POLICIAIS.
JÚLIA - Olhe o pezinho... cuidado... cuidadinho.
(Júlia ria) É bem verdade que não é a morte que eu desejei para você. Queria
que você também se afogasse no lago, como eu me afoguei. Mas, quem não tem cão,
caça com gato! Você vai mesmo pela marquise até se quebrar todo, lá embaixo...
Olhe a mãozinha... olhe, cuidado!
CESÁRIO PERCEBEU A INUTILIDADE DE SEUS ESFORÇOS. ERA
HUMANAMENTE IMPOSSÍVEL COMPLETAR A OPERAÇÃO. TENTOU REGRESSAR À JANELA. COLOCOU
A MÃO NO PARAPEITO, MAS JÚLIA APLICOU-LHE UMA PANCADA VIOLENTA NOS DEDOS,
APROVEITANDO-SE DE UMA ESTATUETA DE BRONZE. CESÁRIO BERROU DE DOR E
DESPENCOU-SE.
A QUEDA TINHA SIDO TERRÍVEL. O SANGUE LHE BANHAVA OS CABELOS
ALOURADOS E A PERNA PARECIA QUEBRADA. TENTOU LEVANTAR-SE COM DIFICULDADE.
PENSOU NO DELEGADO. E UMA ESTRANHA FORÇA LEVOU-O A MOVIMENTAR-SE COMO UM SACI.
RODEOU O EDIFICIO PARA APROVEITAR-SE DA ESCURIDÃO DA NOITE.
FIM DO CAPÍTULO 105
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