quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 105


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 105

Participam deste capítulo

Baby -  Claudio Cavalcanti
Inês  -  Betty Faria
Daniel  - Paulo Araújo
Pé-na-Cova  -  Antonio Pitanga
Delegado  -  Vinicius Salvatori
Cabo Faria
Cesário  -   Carlos Eduardo Dolabella
Júlia  -  Ida Gomes


CENA 1  -  CLAREIRA  -  EXTERIOR  -  DIA

BABY REUNIU OS HOMENS NUMA CLAREIRA ENTRE DOIS OUTEIROS A UMAS DUAS LÉGUAS DO LITORAL. DIVERSOS DOS COMPANHEIROS APRESENTAVAM CURATIVOS NA FACE, BRAÇOS, PERNAS E TÓRAX.

INÊS LIMPAVA UM RIFLE COM UM PEDAÇO DE FLANELA AMARELA. DEPOIS DE PERCORRER AS IMEDIAÇÕES COM OLHOS ATENTOS, BABY PEDIU AO GRUPO PARA SE JUNTAR UM POUCO MAIS. ERA DIA. MAIS OU MENOS QUATRO E QUARENTA DA TARDE.

BABY  -  Olha, pessoal, o negócio é o seguinte. Estamos proibidos até de ir a Porto Azul. Não podemos mais entrar na cidade.

DANIEL  -  Estamos mesmo. Minha Luana tentou ir até lá pra buscá remédio de curativo e num deixaro ela passá.

PÉ-NA-COVA  -  (admirado) Até as mulhé eles qué impedi de passá?

BABY  -  Exato. Até nossas mulheres. Vocês acham que a gente pode ficar quieto depois disso?

HOMENS  -  (a uma só voz) Claro que não!

INÊS  -  (pulou, imitando um gangster, girando um rifle de um lado para o outro) Legal! Legal! Temos de mandar brasa, rapaziada!

OS HOMENS RIRAM-SE COM A BRINCADEIRA DA MULHER DO CHEFE. BABY PROCUROU NÃO CONDICIONAR O GRUPO A INFANTILIDADES.

BABY  -  Que é isso, Inês?

INÊS  -  Ué... tou animando os guris!

BABY PUXOU A ARMA E LEVOU A ESPOSA PARA UM CANTO ENTRE AS FOLHAGENS.

BABY  -  (dirigiu-se novamente aos homens) O que eu quero dizer é que não podemos nos conformar em acatar esta ordem estúpida da Justiça. Não tivemos sorte da primeira vez, mas vamos ter da segunda. Eu jurei a mim mesmo que vou entrar naquela cidade para tomar conta das casas, a qualquer preço!

INÊS  -  Falou, falou! A gente entra e pum! Pum! Pum! Mata todo mundo! Dá tiro em tudo quanto é policial!

BABY  -  (explodiu, zangado) Quer calar a boca e ficar quieta? Você pensa que eu estou brincando?

INÊS  -  (replicou com violência) Eu também não, Leandro!

DANIEL  -  Tu tá gozando a desgraça da gente, Inês?

INÊS  -  Não, não estou gozando ninguém! Estou falando... falando como mulher de bandido, ora!

OS HOMENS ENTREOLHARAM-SE, AFLITOS.

BABY  -  (desarvorado) Mulher de bandido? E quem é bandido?

INÊS  -  Você! Meu irmão! Pé-na-Cova! Todo mundo! Você está transformando todos os seus companheiros em bandidos. Em assaltantes de cidade!

BABY  -  Não diga asneiras!

DANIEL  -  (berrou) A gente tá lutando por uma causa justa!

INÊS  -  Há varias maneiras de lutar, sem ter uma arma na mão!

BABY  -  Nós estamos reagindo a uma agressão!

INÊS  -  Estão dando àquela gente o direito de tratar vocês como assaltantes. Será que não perceberam isso até agora? Vocês viraram mau elemento?

BABY  -  Porque eles quiseram assim!

INÊS  -  E vocês reagiram exatamente como eles queriam! Pra serem afastados a bala, como bandidos!

DANIEL  -  É melhor mulher num se metê!

PÉ-NA-COVA  -  É isso mesmo! Mulhé só atrapalha!

DANIEL  -  (segurando-a pelo braço) Vai embora, Inês!

INÊS  -  (livrou-se de Daniel e colocou ambas as mãos nas cadeiras, em atitude de valentona) Tá bem! Eu vou, gente! Eu vou, porque já disse o que tinha de dizê!

JOGOU A ARMA COM RAIVA NO CAPINZAL QUE CIRCUNDAVA A CLAREIRA E SAIU A PASSOS ACELERADOS. BABY AGACHOU-SE E RECOLHEU O RIFLE, ALISANDO-LHE A CORONHA.

DEMOROU-SE UM POUCO ANTES DE VOLTAR A FALAR. PARECIA QUE ALGUMA COISA O ATORMENTAVA AGORA.

BABY  -  Talvez... ela tenha razão, turma! Talvez... eu esteja levando vocês para um caminho errado...

PÉ-NA-COVA  -  Ninguém tá levando ninguém, chefe. Nós sabemo o que tamo fazendo.

BABY  -  Vocês estão dispostos, mesmo que as consequências sejam as que ela acabou de dizer?

DANIEL  -  Mesmo assim.

BABY COMEÇOU A RELATAR O PLANO QUE TINHA ARQUITETADO DEMORADAMENTE.

BABY  -  Muito simples. A gente...

CORTA PARA:

CENA  2  -  PORTO AZUL  -  DELEGACIA  -  INTERIOR  -  DIA

CABO FARIA PEDIU LICENÇA AO DELEGADO, ENTROU NA PEQUENA E MAL MOBILIADA SALA E ENTREGOU O ENVELOPE PARDO AO CHEFE DO DESTACAMENTO.

CABO FARIA  -  E então, doutor? O que foi que o dentista revelou?

O DELEGADO MOREIRA PASSEOU OS OLHOS PELO PAPEL COM VAGAR, FRANZINDO A TESTA.

DELEGADO  -  Já tenho o resultado definitivo. Agora, não há mais dúvidas... aqui está o parecer do dentista!

CABO FARIA  -  (impacientava-se) O corpo é de Dona Júlia ou não é?

CORTA PARA:
JÚLIA (Ida Gomes)

CENA 3  -  APARTAMENTO DE CESÁRIO  -  QUARTO  -  INTERIOR  -  NOITE

CESÁRIO PREPARAVA-SE PARA DORMIR, ESTICANDO-SE POR SOBRE A COLCHA LIMPA E BEM PASSADA. SABIA QUE CLARA, SUA MÃE, TINHA IDO VISITAR UMA PARENTA NA CIDADE VIZINHA, MAS PODERIA CHEGAR A QUALQUER INSTANTE. OUVIU QUANDO A PORTA RANGEU NOS GONZOS E BATEU, COM RUÍDO, AO ENCAIXAR-SE DE VOLTA AOS UMBRAIS.

CESÁRIO  -  Mãe... você voltou?

COMO NINGUÉM RESPONDESSE, CESÁRIO LEVANTOU-SE, VESTIU UM ROUPÃO E SE ENCAMINHOU PARA A SALA. ESPANTOU-SE AO VERIFICAR QUE TODAS AS LUZES ESTAVAM APAGADAS NO INTERIOR DO APARTAMENTO. LEMBRAVA-SE DE TER DEIXADO ACESAS AS LUZES DA SALA E DO CORREDOR. JULGOU QUE A MÃE TIVESSE VOLTADO E ESTIVESSE NA COZINHA.

CESÁRIO  -  Mãe... trouxe o meu jantar?

DE UM CANTO DA SALA, ÀS ESCURAS, A VOZ RESPONDEU ÀS INTERROGAÇÕES DO HOMEM.

VOZ DE MULHER - (off) Não é sua mãe. Sou eu, meu amor! Não me esperava?

CESÁRIO ESTREMECEU E PROCUROU UM LUGAR ONDE PUDESSE SENTAR-SE. RECONHECERA A VOZ DA MULHER A QUEM MATARA.

ERA JÚLIA.

CESÁRIO TREMIA DA CABEÇA AOS PÉS, QUERENDO FUGIR À VISÃO DA MULHER.

CESÁRIO  -  Como... é que tu tá aqui... se acharo teu corpo, desgraçada? (berrou, histérico) Se acharo teu corpo no fundo da lagoa?

TENTOU ABRIR A PORTA E AFASTAR-SE DA CASA. A PORTA TINHA SIDO FECHADA À CHAVE E JÚLIA GARGALHAVA SINISTRAMENTE.

JÚLIA  -  Acharam mesmo? Eu vi quando me retiraram do fundo das águas. Tiraram o corpo arrasado. Coitada de mim!

CESÁRIO  -  (forçava a porta com os ombros) Abre essa porta! Abre essa porta! Não quero ver tua cara! Eu vou sumir daqui!

TENTOU FORÇAR OUTRA PORTA, LATERAL.

JÚLIA  -  Não adianta, está tudo trancado...

O BANDIDO DESESPERAVA-SE. A CABEÇA LHE PARECIA UM PEDAÇO DE PEDRA E OS MEMBROS NÃO ACUDIAM AO SEU CHAMAMENTO.

CESÁRIO  -  Abra aqui! Gente! Socorro! Me prenderam aqui! Socorro!

JÚLIA GARGALHAVA CADA VEZ COM MAIOR INTENSIDADE, ANTE O DESESPERO E A COVARDIA DO MARIDO.

CESÁRIO VOLTOU ARFANTE, AJOELHANDO-SE DIANTE DELA.

CESÁRIO  -  Julinha! Julinha! Tenha dó... de onde você tá, me deixa! Me deixa em paz! Eu num queria que tu morresse! Juro!

JÚLIA  -  Coitadinho! Não queria que eu morresse... mas só virou o barco pra me afogar! Não foi?

CESÁRIO  -  (desculpou-se, acovardado) Não tinha culpa se tu não sabia nadar!

JÚLIA  -  Pois é. Coitado! Não tem culpa de nada! Viu eu me afogar... sem levantar um dedo para me salvar! Não teve mesmo culpa de nada!

CESÁRIO  -  Eu não podia fazer nada, Júlia. Mas diga o que tu quer. Diga e eu te dou pra tu me deixá em paz, desgraçada!

O VULTO PERMANECIA ENVOLTO NA PENUMBRA DA SALA, QUEBRADA APENAS PELA RÉSTEA DE LUZ QUE CHEGAVA AO QUARTO DE CESÁRIO.

JÚLIA VOLTOU A FALAR, EMPRESTANDO À VOZ UMA RESSONÂNCIA FASTASMAGÓRICA. O HOMEM TREMIA.

JÚLIA  -  Eu quero sim, Cesário... quero que você me faça uma coisa... é uma coisa muito importante para mim. Uma coisa que eu desejo muito.

CESÁRIO  -  O quê? Diga que eu faço!

JÚLIA  -  Quero... um beijo! Um beijo igualzinho àqueles que você dava em Tula... não os que você dava em mim. Eram sempre fingidos... sem graça. Quero os que você dava em Tula... e depois quando obrigava Dona Ester, coitada! Aqueles sim, é que eram beijos! Pois eu quero ser beijada, assim!

CESÁRIO ENGOLIU EM SECO. COMO BEIJAR UMA MORTA?

CESÁRIO  -  Só... só isso? Só... um beijo? Mais nada?

JÚLIA  -  Só. Pra eu poder encontrar sossego. Paz. Eu não posso continuar com esse desejo frustrado. Você nunca mei beijou daquele jeito! Ah, é muito triste a gente vagar no espaço, desejando ser beijada!

CESÁRIO  -  (levantou-se) Tá bão, Júlia. Se é só o beijo mesmo...

A MULHER ABRIU OS BRAÇOS E SORRIU. LEMBRAVA UMA VESTAL PRONTA PARA O SACRIFÍCIO COM O VESTIDO BRANCO, DE MANGAS COMPRIDAS, ESVOAÇANTES. CESÁRIO A ENCAROU, APAVORADO.

TENTOU DAR UM PASSO, MAS NÃO MOVEU UM MÚSCULO DAS PERNAS.

CESÁRIO  -  (gritou, tenso) Não, eu não posso! Não posso, Julinha! Peça outra coisa... peça o que você quiser... velas, dúzias de velas, missas, orações... eu dou tudo. Faço todo o sacrifício, mas não aguento beijar um fantasma!

JÚLIA  -  Pois muito bem. Eu vou pedir outra coisa!

CESÁRIO  -  Pede! Pede pra acabar logo essa agonia! Eu num aguento mais, viu? Num aguento mesmo!

JÚLIA  -  Certo! Olhe pra mim. Eu vou te dizer o que quero. (a voz lhe saiu grave, pausada) Eu quero sua vida!

CESÁRIO  -  (sentiu a sala rodar) O quê?

JÚLIA  -  Sua vida! Nem mais, nem menos. Eu quero que você morra... como eu morri. Em pânico... em desespero... sem ter uma mão que me ajudasse a me salvar...

CESÁRIO  -  (conseguiu se dominar por um momento) Se tu é fantasma mesmo, é um fantasma doido, varrido! Porque eu não estou disposto a me matar por sua causa, não!

JÚLIA  -  Nem mesmo depois de saber que o delegado vem aí pra te prender? Depois do reconhecimento do meu corpo... vão pedir a tua prisão. Ou você não sabe que o Delegado Moreira tem provas que podem levá-lo ao xadrez? E testemunhas de que você queria que eu morresse? Você fez muito mal em me mandar assinar aqueles cheques em branco, meu amor. Sua intenção ficou bem clara. E o pedido de casamento a Dona Ester logo depois da minha morte? Tudo isso foram erros que você cometeu e que permitem ao delegado pedir sua prisão! Aliás... eles não vão demorar a chegar aqui... o dentista deu o laudo... levaram ao novo promotor... eu acho que você está mesmo perdido, Cesário...

CESÁRIO  -  Eu... eu vou fugir antes que eles apareçam!

JÚLIA  -  Pois fuja, meu amor! Fuja mesmo, viu?

CESÁRIO  -  Me dá a chave da minha porta!

JÚLIA  -  Eu não sei da sua chave!

CESÁRIO TENTOU ABRIR A PORTA. JÚLIA RIA DA IMPOTENCIA DO HOMEM. COMO UM LOUCO, O ASSASSINO ATIROU-SE DE OMBROS CONTRA A MADEIRA. A PORTA NÃO CEDEU UM MILÍMETRO. CESÁRIO OLHOU A JANELA.

JÚLIA  -  A não ser... que você tente escapar por aí... São só três andares... você pode ir pela marquise... alcançar o outro lado do prédio... talvez consiga descer... mas também, qualquer deslize... e você se esborracha lá embaixo!

JÚLIA RIA, GOSTOSAMENTE. CESÁRIO COMEÇOU A PULAR A JANELA, CUIDADOSAMENTE. OLHOU MAIS UMA VEZ PARA BAIXO. MEDIU O PERIGO. E RETESOU OS MÚSCULOS. TINHA DE ESCAPAR ANTES DA CHEGADA DOS POLICIAIS.

JÚLIA  -  Olhe o pezinho... cuidado... cuidadinho. (Júlia ria) É bem verdade que não é a morte que eu desejei para você. Queria que você também se afogasse no lago, como eu me afoguei. Mas, quem não tem cão, caça com gato! Você vai mesmo pela marquise até se quebrar todo, lá embaixo... Olhe a mãozinha... olhe, cuidado!

CESÁRIO PERCEBEU A INUTILIDADE DE SEUS ESFORÇOS. ERA HUMANAMENTE IMPOSSÍVEL COMPLETAR A OPERAÇÃO. TENTOU REGRESSAR À JANELA. COLOCOU A MÃO NO PARAPEITO, MAS JÚLIA APLICOU-LHE UMA PANCADA VIOLENTA NOS DEDOS, APROVEITANDO-SE DE UMA ESTATUETA DE BRONZE. CESÁRIO BERROU DE DOR E DESPENCOU-SE.

A QUEDA TINHA SIDO TERRÍVEL. O SANGUE LHE BANHAVA OS CABELOS ALOURADOS E A PERNA PARECIA QUEBRADA. TENTOU LEVANTAR-SE COM DIFICULDADE. PENSOU NO DELEGADO. E UMA ESTRANHA FORÇA LEVOU-O A MOVIMENTAR-SE COMO UM SACI. RODEOU O EDIFICIO PARA APROVEITAR-SE DA ESCURIDÃO DA NOITE.

FIM DO CAPÍTULO 105


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