sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 69


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 69

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Dr. Max  -  Álvaro Aguiar
Dr. Gustavo  -  Francisco Serrano
Otto   -  Jardel Filho
Paulus  -  Emiliano Queiroz
Delegado  -  Vinicius Salvatori
Conceição  -  Zeni Pereira



CENA 1  -  FLORIANÓPOLIS  -  HOSPITAL  -  CONSULTÓRIO DE CYRO  -  INTERIOR  -  DIA

AS APREENSÕES E RECEIOS DO DIRETOR DO HOSPITAL TINHAM FUNDAMENTO. ELE SABIA QUE A QUALQUER INSTANTE O CASO PODERIA ESTOURAR NA POLÍCIA. NAS RUAS DE FLORIANÓPOLIS, PORTO AZUL E NAS CIDADEZINHAS PRÓXIMAS, O NOME DE CYRO VALDEZ APARECIA PICHADO NAS PAREDES: ASSASSINO, MARCIANO INFAME, MÉDICO MONSTRO, ETC. DR MAX TINHA CERTEZA DE QUE O PIOR AINDA ESTAVA POR CHEGAR.

ENFERMEIRA  -  Dr. Max, estão aí dois homens da polícia e procuram pelo Dr. Cyro.

DR. MAX  -  (dirigindo-se ao Dr. Gustavo, cirurgião que o acompanhava no consultório de Cyro Valdez) Eu disse a você que o caso ia parar na polícia.

DR. GUSTAVO  -  Alguém da família do paciente deve ter dado queixa.

DR. MAX  -  Deixe-os entrar!

OS DOIS POLICIAIS EXAMINARAM O APOSENTO, ANTES DE SAUDAREM OS DOIS MÉDICOS. MAX MAIS À FRENTE E GUSTAVO UM POUCO ATRÁS.

POLICIAL 1  -  (entregou um documento ao diretor) Uma intimação para o Dr. Cyro.

DR. MAX  -  (olhou o relógio de pulso) Os senhores podem esperar... Dr. Cyro está a caminho. Já devia, inclusive, ter chegado.

POLICIAL 1  -  Nós esperaremos.

CYRO VALDEZ DEMOROU UNS 5 OU 6 MINUTOS, MAS CHEGOU AO HOSPITAL COMO SE NADA EXISTISSE CONTRA ELE. ATRAVESSAVA UMA FASE DE TOTAL APATIA. DESLIGADO DO MUNDO.

POLICIAL 1 – (aproximou-se dele, com o documento na mão) Dr. Cyro Valdez?

CYRO  -  Eu mesmo.

POLICIAL 1  -  Vim lhe entregar esta intimação.

CYRO  -  (abriu o papel com movimentos mecânicos e leu o conteúdo) Estou intimado a comparecer à delegacia e depor, no dia 28. De que se trata?

OS HOMENS ENTREOLHARAM-SE, ESPANTADOS.

DR. GUSTAVO  -  Com certeza, alguém deu queixa de você.

POLICIAL 1  -  É... foi isso mesmo. Alguém deu queixa. Só o delegado é que pode lhe prestar informações mais precisas. Nós não estamos autorizados. Da minha parte era só isso...

OS POLICIAIS DEIXARAM O CONSULTÓRIO. GUSTAVO FECHOU A PORTA E VIU AS FEIÇÕES TRANSTORNADAS DO DIRETOR. TINHA OS BRAÇOS CRUZADOS E A TESTA FRANZIDA.

DR. MAX  -  E agora? E agora, Cyro? O que se pode fazer?

CYRO  -  Você está preocupado, Max?

DR. MAX  -  Se estou preocupado! Santa Mãe de Deus! Vai estourar o escândalo! Nosso hospital está sendo visado. Conte a  ele, Gustavo, o incidente de hoje. E quantos clientes estão pedindo alta. E como caiu o índice de internações!

DR. GUSTAVO  -  Um acidentado gritava em altos berros ao dar entrada hoje á tarde. Não queria ser internado aqui. Dizia que nós tiramos corações de pacientes vivos para experiências. A má fama está se espalhando!

DR. MAX  -  Daqui a pouco ninguém mais vai querer se internar aqui.

CYRO  -  (sentou-se com calma, pouco ligando à atitude desesperada dos companheiros) Eu compreendo o prejuízo que isso poderá acarretar para o Hospital.

DR. MAX  -  Não só material... mas principalmente prejuízo moral. Imagine o que acontecerá se estourar o escândalo da denúncia!

DR. GUSTAVO  -  Mas vai estourar o escândalo da denúncia!

DR. MAX  -  Não tenha dúvidas, Cyro, de que a mãe do doador deu queixa á polícia. Como você poderá provar que é inocente?

CYRO  -  (baixou os olhos por alguns segundos e voltou a encarar firmemente os dois colegas de profissão) Julguei, até agora, que bastaria a direção do Hospital me defender, dizendo que, aqui mesmo, desapareceu a prova definitiva da minha inocência. Ou então afirmar junto aos órgãos superiores, ou a qualquer das nossas entidades que todos os exames estavam certos, foram analisados por mim e por vocês. E pronto! Nunca soube de um caso que um médico viesse a ser condenado por acusações inconsistentes de pessoas menos corretas. Vocês estão certos,  eu sei, de que estão tramando uma rede de infâmias e intrigas, apenas para me prejudicar. O Hospital entra como elemento de cenarização.

DR. MAX  -  Sim... é claro! Nós temos de ajudá-lo. Mas... pense bem... apoiando-o, mesmo sabendo que você tem razão... estamos nos comprometendo diante da opinião pública!

CYRO  -  E não convém ao Hospital... se comprometer diante da opinião pública!

DR. MAX  -  Exatamente, Cyro! Eu quero que você compreenda bem a nossa situação.

CYRO  -  Você está pensando num meio de salvar seu cargo, Max!

DR. MAX  -  Não, Cyro. Ao contrário. Não estou pensando no meu cargo. Estou pensando é no próprio Hospital. Nós não agimos bem... temos de arcar com as conseqüências do que fizemos!

CYRO  -  Não... agimos... bem?

DR. MAX  -  No caso do transplante, devíamos ter nos precavido melhor contra acusações dessa natureza. Só possuíamos uma única prova. E não tivemos o cuidado de preservá-la.  Você agora teria de tê-la em mãos, para se defender. A menos que forjemos um exame... como eu já havia sugerido... para nos livrarmos dessa situação vexatória.

CYRO  -  (pulou) Não! Eu não vou forjar exames! Creio que bastará o testemunho dos médicos que me ajudaram na operação.

DR. GUSTAVO  -  Vai ser difícil!

CYRO  -  Ah, sim! Compreendo. Não podem comprometer o Hospital. Perderiam o emprego. Eu compreendo bem.

DR. MAX  -  (bateu com os punhos contra a mesinha de ferro)  Cyro... já sei o que temos de fazer. Tenho uma sugestão para salvarmos a reputação do Hospital.

CYRO  -  Diga!

DR. MAX  -  Apoio você, incondicionalmente. Dou meu testemunho a seu favor. Mas me demito do Hospital. Imediatamente.

CYRO  -  (sombrio) Não creio que haja necessidade do seu sacrifício. Eu é que me demito do Hospital!

GUSTAVO E MAX SE ENCARARAM. NUM MOVIMENTO MECÂNICO.

DR. MAX  -  Não, Cyro. Não vamos fazer as coisas assim. Você se afastará, temporariamente. É muito útil ao Hospital.

CYRO  -  (irredutível) Eu me afasto, definitivamente. A partir deste momento, considero-me desligado do quadro médico. Creio que assim fica salva a reputação do Hospital e o cargo de todo mundo garantido... sem problemas. Isento o Hospital de culpa. Vou assumir toda a responsabilidade.

DR. MAX  -  Cyro!

CYRO  -  Não diga mais nada, Dr. Max! É inútil! Minha decisão é uma só! Inabalável!

CORTA PARA:


CENA 2  -  FLORIANÓPOLIS  -  DELEGACIA DE POLÍCIA  -  SALA DO DELEGADO  -  INTERIOR  -  DIA

O ESCRIVÃO AJEITOU A FOLHA, COM CARBONO, NA MÁQUINA USADA, DE TECLAS GASTAS, E FEZ UM SINAL AO DELEGADO. TUDO PRONTO PARA O DEPOIMENTO.

DELEGADO  -  Nome?

CYRO  -  Cyro Valdez.

DELEGADO  -  Idade?

CYRO  -  31 anos.

DELEGADO  -  Nacionalidade?

CYRO  -  Nasci em Porto Azul.

DELEGADO  -  Profissão?

CYRO  -  Médico.

O ESCRIVÃO ACOMPANHAVA O DIÁLOGO, BATENDO Á MÁQUINA, SEM OLHAR PARA O DEPOENTE.

DELEGADO  -  Dr. Cyro, o senhor realizou uma operação de transplante no Sr. Otto Muller. O coração do Sr. Muller foi substituído pelo de outro homem. Isso é verdade?

CYRO  -  Sim. É verdade.

DELEGADO  -  Como se chamava esse homem?

CYRO  -  Vicente Marques. Ele foi acidentado. Não tinha a menor possibilidade de recuperação, quando realizei a intervenção.

DELEGADO  -  Mas Vicente Marques estava morto quando o senhor retirou do seu peito o coração que hoje bate no peito do Sr. Muller? Vou ser mais claro: o coração de Vicente ainda batia?

CYRO  -  Senhor delegado, o transplante cardíaco só pode ser realizado se o coração ainda estiver pulsando.

DELEGADO  -  Em outras palavras: se o doador ainda estiver com vida.

CYRO  -  Se se pode chamar isso de vida. Com o cérebro morto, um homem está condenado a morrer dentro de alguns minutos.

DELEGADO  -  Como o senhor pode afirmar, com tanta certeza, que um homem vai morrer, Dr. Cyro? O senhor é Deus, por acaso?

CYRO  -  Não, mas sou médico. E sei quando uma pessoa está desenganada. Condenada por um mal ou um acidente. Sou um cientista, de algum renome internacional. Um especialista na minha profissão. Sei que, quando um eletrocardiograma não registra mais nenhum estímulo cerebral, um homem está clinicamente morto. Isto quer dizer que nem Deus pode salvar o paciente!

DELEGADO  -  O senhor pode provar que era esse o estado de Vicente Marques?

CYRO  -  Infelizmente, não. Porque a única prova, a fita do eletro, foi roubada do cofre do hospital. Há o testemunho dos médicos que me ajudaram na operação e o do Dr. Roberto que acompanhou o caso do acidentado desde sua entrada no Hospital, até sua morte clínica.

DELEGADO  -  Então o senhor não pode apresentar qualquer outra prova material em sua defesa?

CYRO  -  Não. Apenas a minha palavra. E acho que isso basta. Porque se eu for condenado pelo que fiz, todos os cirurgiões do mundo, cujos pacientes não sobreviveram às operações, terão de ser também acusados de assassinato. Todos os casos fatais deixam sempre a dúvida: não teria o doente sobrevivido sem a operação? A própria profissão de médico estará ameaçada, pois o médico é o único juiz dos seus atos e de suas decisões.

CORTA PARA:

CENA 3  -  FLORIANÓPOLIS  -  RUA  -  ESTERIOR  -  DIA

OTTO MULLER JÁ SE DAVA AO LUXO DE, VEZ POR OUTRA, DAR UM GIRO PELAS MINAS, TOMANDO PÉ DA SITUAÇÃO NA SUA ÁREA DE DOMÍNIO. LIA COMUMENTE O ACOMPANHAVA NESSES PASSEIOS MATINAIS. NAQUELE DIA O SUPERINTENDENTE DECIDIU SAIR SOZINHO E, POUCO DEPOIS, ABANDONANDO O CARRO NUMA DAS ALAS PROTEGIDAS POR ÁRVORES FRONDOSAS, INICIOU SEU PASSEIO COSTUMEIRO.

FOI QUANDO A NEGRA CONCEIÇÃO CHAMOU-O NERVOSA.

CONCEIÇÃO  -  Seu Otto Muller.

OTTO VOLTOU-SE E PAULUS QUE O VIRA, DE LONGE, ESTREMECEU.

OTTO  -  (berrou, enojado) Quem é esta mulher?

CONCEIÇÃO  -  Sou... a Conceição. Não se lembra? Eu fazia sua comida, na sua casa!

OTTO  -  Ah, sim! Bem que a fisionomia não me era estranha! O que você quer?

CONCEIÇÃO  -  (agarrando-lhe o punho) Eu quero... só beijar sua mão, Seu Otto!

NUM MOVIMENTO INSTINTIVO DE REPUGNÂNCIA, OTTO MULLER PUXOU A MÃO, COM RAIVA.

OTTO  -  Ai, que eu morro! Esta mulher não me larga!

PAULUS JÁ SE ACHAVA A SEU LADO, PRESSUROSO.

PAULUS  -  Vá embora, Conceição! Seu Otto está cansado. Ele vai descansar, agora! (tomou o chefe pela mão) Vamos, Otto!  
    
CONCEIÇÃO  -  (pulou à frente, muito rápida para seu corpo e sua idade) Tenho de lhe dizê uma coisa, seu Otto!

PAULUS EMPALIDECEU. TENTOU IMPEDIR QUE A NEGRA DISSESSE QUALQUER PALAVRA.

OTTO  -  (vociferou) Ah... que mulher chata!

PAULUS  -  (gritou, histérico) Saia, Conceição!

OTTO DEU DOIS PASSOS E A NEGRA FALOU, NÍTIDO, PARA QUE TODOS OUVISSEM.

CONCEIÇÃO  -  Seu Otto! O coração que ta batendo no seu peito é do meu filho! Vicentão!

OTTO  -  (parou, como que fulminado, e olhou para trás) Que é que ela está dizendo?

PAULUS  -  É louca. Não ligue, Otto!

CONCEIÇÃO  -  (repetiu, cara-a-cara com o doente) Tô dizendo a verdade, seu Otto! O coração que lhe salvô a vida... é do meu filho! Tá me ouvindo? Do meu filho!

FIM DO CAPÍTULO  69



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