sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 72


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 72

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Ester  -  Gloria Menezes
Pé-na-Cova  -  Antonio Pitanga
Padre Miguel  -  Artur Costa Filho
Baby  -  Claudio Cavalcanti
Ricardo  -   Edney Giovenazzi
Bárbara  -  Zilka Salaberry
Mestre Jonas  -  Gilberto Martinho


CENA 1  -  PORTO AZUL  -  IGREJA  -  INTERIOR  -  DIA

MINUTOS ANTES DA PRAÇA FICAR TOTALMENTE TOMADA PELOS MANIFESTANTES, MESMO CONTRA SUA VONTADE, CYRO VALDEZ PROCUROU REFÚGIO NA IGREJA DE PADRE MIGUEL. O COMENDADOR, INÊS E BABY TINHAM-SE JUNTADO AOS PARTIDÁRIOS DO MÉDICO E A SITUAÇÃO SE AGRAVAVA A CADA INSTANTE.

A MASSA CONTINUAVA A RUGIR “FORA, CYRO!” E NUM MOVIMENTO ESTRATÉGICO, ENVOLVEU, NUM CORDÃO HUMANO, A PEQUENA IGREJINHA DE PORTO AZUL. BABY CORREU AO INTERIOR, PERCEBENDO A GRAVIDADE DOS ACONTECIMENTOS. NÃO DISPUNHAM DE MEIOS PARA COMUNICAÇÃO COM AS AUTORIDADES DE FLORIANÓPOLIS.

BABY  -  (dirigiu-se ao cirurgião) Como vamos sair desta, Cyro?

RICARDO  -  Nós o ajudaremos a sair da igreja. Podemos arquitetar um plano.

CYRO  -  (interveio, calmo) Não, por favor, não se preocupem comigo! Saiam todos. Deixem-me só que eu resolvo meu caso com eles...

OS GRITOS DA MULTIDÃO CHEGAVAM AO INTERIOR DO TEMPLO.

ESTER  -  (medrosa) Não podemos sair, agora!

D. BÁRBARA  -   E não é justo deixarmos você, sozinho, para enfrentar essa gente revoltada.

CYRO  -  Vão, por favor! Me farão um grande bem se afastarem Ester daqui, com Ivan.

BABY  -  Eu vou na frente e tento amansar essa gente!

PADRE MIGUEL  -  Levo Ester e o menino.

O VOZERIO INTENSIFICOU-SE – APUPOS, ASSOVIOS, GRITOS.
NÃO HAVIA BRECHA POR ONDE OS ALIADOS DE CYRO PUDESSEM ROMPER O BLOQUEIO DA TURBA CADA VEZ MAIS ENFURECIDA. ESTER RETORNOU AO INTERIOR, AFOBADA, ROSTO VERMELHO, OLHOS ARREGALADOS.

ESTER  -  Parecem enlouquecidos.

PADRE MIGUEL  -  Mas não farão nada!

CYRO  -  (abraçando a esposa) Vá você agora, Ester, com Ivan. Não há perigo!

ESTER  -  (beijando-lhe os lábios, num toque rápido) Tenha cuidado com você!

O VOZERIO AUMENTAVA.

MULTIDÃO  -  “Fora, Dr. Cyro! Volta pra Marte! Volta pro inferno! Fora! “

ESTER SURGIU À PORTA DO TEMPLO, CONDUZIDA PELAS MÃOS DO VIGÁRIO.

MINEIRO  -  (gritou) É a mulher dele! Vamos agarrar ela! Pra obrigar ele a sair!

MESTRE JONAS E SEUS HOMENS BUSCARAM IMPEDIR A REAÇÃO DO GRUPO, QUANDO PADRE MIGUEL SE INTERPÔS, ENÉRGICO.

PADRE MIGUEL  -  Que é isso? Estão loucos? Não respeitam mais a casa de Deus?

UM HOMEM BERROU COM ÓDIO, NA MULTIDÃO POSTADA À FRENTE DO PÁROCO DE PORTO AZUL.

HOMEM  -  Queremos obrigar o Dr. Cyro a dar o fora daqui! Ele tem de sair daqui para sempre!

ESTER RETORNOU AO TEMPLO, APAVORADA, ENQUANTO O PADRE DEBATIA COM OS MINEIROS.

PADRE MIGUEL  -  (levantando os olhos para o céu) Deus há de castigá-los por isso!

MINEIRO  -  Manda ele voltar no disco voador!

OUTRO MINEIRO  -  Fora!

PADRE MIGUEL PERMANECEU DIANTE DA MASSA, ATENTO AOS MOVIMENTOS DOS HOMENS. SABIA QUE NINGUÉM – MESMO ESTIMULADO PELA EXALTAÇÃO – OUSARIA ENTRAR NA IGREJA OU AMEAÇAR SUA INTEGRIDADE FÍSICA. PARA TUDO HAVIA UM LIMITE E O PODER DA FÉ, DA RELIGIÃO QUE VINHA MANTENDO UNIDA AQUELA GENTE, AINDA ERA SUPERIOR ÀS MANIFESTAÇÕES DE LOUCURA COLETIVA.

ESTER  -  (apertou as mãos do marido entre as suas) Cyro! Estou apavorada! Eles não me deixaram sair daqui!

O MARIDO ABRAÇOU-A, AMOROSAMENTE. NÃO HAVIA TEMOR NAS FEIÇÕES DE CYRO VALDEZ.

PÉ-NA-COVA  -  (anunciou, falando alto para o interior do templo) Rodearam a igreja, não se pode sair nem pelos fundos. Tem gente em tudo quanto é canto.

CYRO  -  (ergueu o corpo, movido por repentina decisão) Não há necessidade de saídas... através de portas laterais ou traseiras. Vamos sair já, pela frente. Eles não vão fazer nada, contra ninguém. Ninguém vai me expulsar. Vamos embora.

O MÉDICO PARTIU A PASSOS LARGOS COM DESTINO À GRANDE PORTA DE MADEIRA DO TEMPLO.

ESTER  -  (soluçou) Estou... morrendo de medo!

CYRO  -  Pegue Ivan no colo! (e para os demais) Vocês venham atrás de mim!

A FIGURA DO JOVEM MÉDICO ENQUADROU-SE SOB OS PORTAIS ENQUANTO O BURBURINHO RECRUDESCIA. JONAS E ANDRÉ JÁ NÃO CONSEGUIAM CONTER OS ÂNIMOS. A PRESENÇA FÍSICA DE CYRO VALDEZ AGITOU OS MINEIROS. LEMBRAVAM CÃES ROSNANDO À VISTA DE UMA VÍTIMA.

MINEIRO  -  (gritou, quase histérico) Aí está ele! Assassino! Matou o filho de Conceição! Médico assassino! Monstro!

CYRO  -  (imperturbável, ergueu os dois braços, pedindo silencio) Um momento! Esperem! (uma pedra estalou a seus pés) Esperem!

OS HOMENS IMPRESSIONARAM-SE COM A SUAVIDADE, SERENIDADE E CORAGEM DO JOVEM ACUADO. NÃO HAVIA NELE O  MENOR  TRAÇO  DE  MEDO  OU  COVARDIA.  ENFRENTAVA  A TURBA COLÉRICA, POSSESSA, COM UMA CALMA ESTARRECEDORA.

CYRO  -  Por favor, me ouçam! Um momento, apenas!

O VOZERIO POUCO A POUCO FOI DIMINUINDO, ATÉ QUE REINOU O SILENCIO. CYRO DEU ALGUNS PASSOS À FRENTE E LOCALIZOU A NEGRA NA PRIMEIRA FILA DOS MANIFESTANTES.

CYRO  -  (dirigiu-se a ela) Conceição, eu sou médico. Não sou um criminoso. Não sou um monstro. Eu fui honesto e você acreditou em mim. Seu filho ia morrer em alguns minutos. Era irremediável. E eu tinha a prova de que ia morrer, mas foi roubada para que isto que está acontecendo agora me atingisse. Para que todos se revoltassem contra mim. Eu não tenho culpa se existe gente que só deseja o mal para aqueles que querem fazer o bem. Eu só posso lamentar que ainda existam pessoas que se alimentam de ódio.

A MULTIDÃO OUVIA SERENA, SEM REAÇÃO.

CYRO  -  (continuou) Você sabe que eu sou inocente, Conceição. No entanto, se houver em você uma dúvida, por menor que seja, de que eu tenha feito mal a seu filho... eu dou o direito... a você e seus amigos de fazerem justiça, agora, com suas próprias mãos.

ANTES DE ABRIR A BOCA PARA FALAR, A NEGRA LIMPOU OS OLHOS COM O DORSO DA MÃO. CHORAVA EM SILENCIO.

CONCEIÇÃO  -  Deus que tá no céu... é testemunha. Eu não tenho certeza de nada!

AFASTOU-SE, QUANDO CYRO AMEAÇOU SEGURAR-LHE AS MÃOS PRETAS E MALTRATADAS. A MULTIDÃO PERMANECIA SILENCIOSA. PARALISADA.

ESTER ACHEGOU-SE AO MARIDO, COM O FILHO APERTADO CONTRA O PEITO.

POR ALGUNS INSTANTES FORÇARAM PASSAGEM POR ENTRE HOMENS E MULHERES DE FEIÇÕES TRANSTORNADAS. DE REPENTE, UM TIRO, SEGUIDO DE OUTRO. CYRO SENTIU UMA AGULHADA NA PERNA E TOMBOU CONTRA O CHÃO DE BARRO. ERA COMO SE ALGUÉM TIVESSE DETONADO UM REVÓLVER NO CENTRO DE UMA BOIADA. OS MINEIROS ESPALHARAM-SE, EM CORRERIA, PARA TODOS OS LADOS. POR ALGUNS MINUTOS CYRO PERDEU A NOÇÃO DA VIDA. VIU PERNAS PASSAREM JUNTO AO SEU CORPO E O URRO TERRÍVEL DE CENTENAS DE VOZES ANGUSTIADAS.

CORTA PARA:


CENA  2  -  PORTO AZUL  -  PRAÇA  -  EXTERIOR  -  DIA

A PRAÇA ESTAVA VAZIA E SOBRE O CHÃO O MÉDICO AVISTOU O BONEZINHO VERDE DO GAROTO. CONSEGUIU ERGUER-SE COM ALGUMA DIFICULDADE. A PERNA LHE DOÍA COMO OS SEISCENTOS DIABOS. MAS, FELIZMENTE, NUM EXAME SUPERFICIAL, VERIFICOU QUE A BALA NÃO HAVIA ATINGIDO O OSSO. PERFURARA, APENAS, OS MÚSCULOS DA PERNA. AGARROU O BONÉ E, COM A MÃO LIVRE FEZ PRESSÃO CONTRA O FERIMENTO. SENTIU QUE PODIA ANDAR, E SEU PRIMEIRO PENSAMENTO  CONCENTROU – SE NA  MULHER  E  NO  FILHO.

ARRASTOU-SE, PRATICAMENTE, ATÉ O TEMPLO. AINDA DO LADO DE FORA, PERCEBEU QUE ALGO DE GRAVE HAVIA ACONTECIDO.

CORTA PARA:

CENA 3  -  PORTO AZUL  -  IGREJA  -  INTERIOR  -  DIA

O GRUPO DE AMIGOS AGITAVA-SE NERVOSAMENTE EM TORNO DE ESTER. CYRO APROXIMOU-SE E ESTICOU O BRAÇO, MOSTRANDO O GORRINHO DE PANO.

CYRO  -  O menino... perdeu...

ESTER FITOU-O ATORDOADA, FORA DE SI. LENTAMENTE, RETIROU UMA DAS MÃOS QUE AMPARAVAM O CORPO DO MENINO. ESTAVA RUBRA DE SANGUE.

ESTER  -  Para quê? Ele não precisa, não é? Não precisa usar isso... pra que, não é mesmo? Pra quê?

O MÉDICO TENTOU SEGURAR A CRIANÇA. ESTER REPELIU-O AGRESSIVAMENTE.

CYRO  -  Deixe-me ver...

ESTER  -  Não! Você não pode fazer mais nada! Ou pensa que eu acredito nas suas mentiras?

CYRO  -  Ester! Você está fora de si. Talvez...

ESTER  -  (cortou, bruscamente) ... talvez, nada! Eu sei o que aconteceu! Um dos tiros que eram pra você pegou nele...

CYRO  -  Sim... eu sei... mas quem sabe...

ESTER  -  Quem sabe, nada! Você... com a sua bondade... a sua verdade... a sua grande verdade... o matou! (alargou o movimento com o braço livre) Vocês todos o mataram!

SAIU CORRENDO COM O MENINO NOS BRAÇOS E PARTE DO VESTIDO EMPAPADO DE SANGUE. CYRO TENTOU IMPEDI-LA, MAS A MULHER CORRIA, DESESPERADA, PELA PRAÇA VAZIA.

FIM DO CAPÍTULO 72


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