domingo, 12 de outubro de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 70


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 70

Participam deste capítulo

Otto  -  Jardel Filho
Paulus  -  Emiliano Queiroz
Lia  -  Arlete Salles
Conceição  -  Zeni Pereira
Catarina  -  Lidia Mattos


CENA 1  -  FLORIANÓPOLIS  -  RUA  -  EXTERIOR  -  DIA

(continuação imediata da última cena do capítulo anterior)

OTTO DEU DOIS PASSOS E A NEGRA FALOU, NÍTIDO, PARA QUE TODOS OUVISSEM.

CONCEIÇÃO  -  Seu Otto! O coração que ta batendo no seu peito é do meu filho! Vicentão!

OTTO  -  (parou, como que fulminado, e olhou para trás) Que é que ela está dizendo?

PAULUS  -  É louca. Não ligue, Otto!

CONCEIÇÃO  -  (repetiu, cara-a-cara com o doente) Tô dizendo a verdade, seu Otto! O coração que lhe salvô a vida... é do meu filho! Tá me ouvindo? Do meu filho!

INÚTIL A FORÇA QUE PAULUS FAZIA PARA ARREDAR O HOMEM DO LOCAL. OTTO DESEJAVA CONHECER A VERDADE. CONTROLARA-SE ANTE A REVELAÇÃO DA NEGRA.

PAULUS  -  (insistia, suando) Vamos embora, Otto! Já disse. É uma louca!

OTTO MULLER ENCAMINHOU-SE PARA MAIS PRÓXIMO DA MULHER.

OTTO  -  Espere... espere... não entendi bem... você falou... que seu filho... o coração... bem... quem é seu filho?

CONCEIÇÃO  -  Já disse... o Vicente... Vicentão... que foi atropelado.

OTTO  -  Atropelado!

PAULUS  -  Otto, tenha paciência!

OTTO  -  (berrou) Pro diabo! Deixe a mulher falar!

VON MULLER, QUE HAVIA CHEGADO HÁ POUCO, ACOMPANHOU A DETERMINAÇÃO DO FILHO.

VON MULLER  -  Calma! Deixe o Sr. Otto ouvir a mulher!

OTTO  -  Continue, Conceição. Você afirmou... que o coração... do seu filho... que foi atropelado...

CONCEIÇÃO  -  Dr. Cyro tirou do peito dele pra colocar no seu peito!

INCONTINENTI O ALEMÃO COLOCOU A MÃO CONTRA O TÓRAX, COMO SE QUISESSE ARRANCAR UM ÓRGÃO PODRE. ARFAVA.

OTTO  -  No meu... o seu filho... o coração dele... está batendo... Dr. Cyro... quero dizer...

OTTO MULLER ENLOUQUECERA POR ALGUNS INSTANTES. O MUNDO PARECIA-LHE DE LUTO. NEGRAS AS ÁRVORES. NEGRO O CÉU. NEGRA A VIDA. AS PERNAS BAMBEAVAM. O CHOQUE FÔRA FORTE DEMAIS PARA UM HOMEM DOENTE.

PAULUS  -  Otto, que está sentindo?

OTTO  -  Droga! Cale a boca!

CONTINUAVA COM A MÃO CONTRA O PEITO. AS UNHAS FINCADAS CONTRA A PELE.

CONCEIÇÃO  -  Fui trabalhá na sua casa, logo depois... porque eu tinha certeza de tá perto do meu filho!

OTTO  -  O seu filho... eu... era o seu filho?

CONCEIÇÃO  -  É a impressão que eu tenho. Porque o sinhô vive às custas dele. Pra mim... o coração dele é que é vida! Sem ele o sinhô era um home morto. Por isso... o sinhô é também meu filho!

OTTO  -  Eu... seu filho... eu... seu filho! (gritava como um alucinado, com as lágrimas correndo e brotando cada vez mais dos olhos azuis) O diabo é que é seu filho! O diabo! Não eu! (saiu correndo na direção do automóvel; ao longe, a voz histérica era ouvida pelos mineiros, abismados) O diabo! O diabo é que é seu filho! O diabo!

PAULUS CORREU ATRÁS DO CHEFE, ALCANÇANDO-O ANTES QUE O HOMEM ABRISSE A PORTA DO CARRO.

PAULUS  -  Entre e se acalme, Otto!

OTTO  -  Toque! Depressa! Pro inferno!

CORTA PARA:

CENA 2  -  MANSÃO DE OTTO MULLER  -  SALA  -  INTERIOR  -  DIA

A MÃO CONTINUAVA CRAVADA NO PEITO NU. OTTO RESPIRAVA FUNDO, ENOJADO COM O ÓRGÃO QUE TRAZIA DENTRO DE SI E LHE PERMITIA CONTINUAR VIVENDO. A FAMÍLIA REUNIRA-SE NA SALA DE ESTAR, A SEU CONVITE. HAVIA UM SILENCIO DE MOSTEIRO.

OTTO  -  Agora... que estão todos reunidos... me digam a verdade. Eu quero toda a verdade... sobre o coração que aquele médico do inferno... colocou no meu peito.

LIA ABRAÇOU-O AMOROSAMENTE, TENTANDO RETIRAR SUA MÃO DE CIMA DO PEITO CABELUDO E FORTE. UM TRAÇO VÍVIDO, CIRCULAR, ATESTAVA A OPERAÇÃO RECENTE.

LIA  -  O que podemos dizer, Otto? Só pretendíamos lhe salvar a vida!

OTTO  -  Então... é verdade... que o filho de Conceição... foi o doador? É verdade? Vocês sabiam! Todos sabiam!

CATARINA  -   (procurou uma fuga, na mentira) Eu... eu não sabia, meu filho!

LIA  -  Sabíamos, sim. Eu sabia... ela sabia... todos nós tínhamos conhecimento... mas que importância tem isso? Você tem de se conformar! Era sua vida ou sua morte! Tem de acostumar com a idéia... de que o coração do homem que lhe deu a vida podia ser de qualquer raça – branco, amarelo, negro. Todo coração é cor de sangue, Otto! A vida não tem cor. E o que você deve a esse homem é isso: sua vida!

OTTO LEVANTOU-SE, SEM RETIRAR A MÃO DE SOBRE O PEITO. O PESCOÇO ESTICADO PARA CIMA, COMO QUE REPUDIANDO O CORAÇÃO QUE LHE BATIA MAIS ABAIXO.

OTTO  -  Isto pode não ter importância para ninguém! Tem para mim! E se vocês sabiam... conhecendo, como me conhecem... não deviam ter deixado!

LIA  -  Devíamos tê-lo deixado morrer, Otto?

OTTO  -  Era preferível!

LIA  -  Otto, crie juízo!

PAULUS  -  Estou absolutamente certo de que tudo foi obra daquele doutorzinho do demônio. Ele fez isso premeditadamente... para castigar você, Otto!

OTTO  -  (andando de um lado para o outro, inquieto) Eu também sei disso. Eu também sei. Eu sei. Também sei...

LIA  -  (cortou) Não faça disso um drama, Otto! Pelo amor de Deus!       

PAULUS  -  Não, Lia. Otto tem razão. Dr. Cyro nunca devia ter feito isso, conhecendo Otto como conhecia!

LIA  -  Não jogue a culpa sobre o Dr. Cyro! Neste caso eu tenho culpa, também!

OTTO  -  (berrou como um doido) Saiam, todos! Quero ficar só!

CATARINA PERMANECEU NA SALA, COM O FILHO À SUA FRENTE. DEU UM PASSO NA INTENÇÃO DE ABRAÇÁ-LO.

OTTO  -  (recuou, possesso) Não me toque!

CATARINA  -  Otto, você enlouqueceu?

OTTO  -  Não me toque. Você não é digna de me tocar! Saia de perto de mim! Não me toque!

NUM ACESSO TOTAL DE INSANIDADE, O HOMEM PROJETOU-SE PORTA A FORA, DESAPARECENDO ENTRE AS ÁRVORES DO QUINTAL. A MÃO COLADA AO PEITO. A BOCA RETORCIDA, O NARIZ REDUZIDO A DUAS PEQUENINAS CRATERAS.

CORTA PARA:


CENA 3  -  FLORIANÓPOLIS  -  PERIFERIA  -  ESTRADA  -  EXTERIOR  -  NOITE

HAVIA HORAS QUE OTTO MULLER DESAPARECERA COM O CARRO. A NOITE CHEGARA, QUANDO LARGOU O VISTOSO AUTOMÓVEL NA ESTRADA E EMBICOU POR UM CAMINHO ESTREITO, DE BARRO, LADEADO DE CAPIM E VEGETAÇÃO RASTEIRA. VIU A CABANA ENVOLTA NA ESCURIDÃO AMBIENTE.

CORTA PARA:

CENA 4  -  CABANA DE CONCEIÇÃO  -  INTERIOR  -  NOITE

DENTRO DA CABANA, TUDO ÀS ESCURAS, APENAS O FOGO DE UM FOGÃO DE LENHA. A VELHA NEGRA PITAVA UM CACHIMBO DE BARRO, BALANÇANDO-SE NA CADEIRA DE PALHINHA FURADA.

O ALEMÃO EMPURROU A PORTA E ENTROU, SEM SE ANUNCIAR. CONCEIÇÃO ACENDEU UM FÓSFORO E RECONHECEU-O.

CONCEIÇÃO  -  O que o sinhô qué?

ELE ENTROU CALADO E SE SENTOU NUM BANQUINHO DE TRÊS PERNAS.

OTTO  -  Venha cá, Conceição!

A VELHA SE APROXIMOU, RECEOSA. OTTO LHE ESTENDEU A MÃO.

OTTO  -  Pode beijar a mão... do seu filho branco!

RESPEITOSAMENTE, A NEGRA BEIJOU-LHE A MÃO QUE ESTIVERA COMPRIMIDA CONTRA O PEITO.

CONCEIÇÃO  -  Meu filho branco!

OTTO  -  E agora... ouça o que seu filho branco tem a lhe dizer. Eu quero, eu exijo, entende? Você deve vingar o que fizeram com seu filho... meu irmão negro. Ele vive em mim... é verdade, mas ninguém... preste atenção... ninguém tinha o direito de tirar o coração dele, ainda vivo, para salvar a vida de outro...

CONCEIÇÃO  -  Sim, sinhô... sim, sinhô!

OTTO  -  Quem fez isso... fez com extrema crueldade... e desrespeito à vida humana. Quem fez, foi com a única intenção de se projetar... valendo-se da vida de seu filho... e da minha.

CONCEIÇÃO  -  Também acho.

OTTO  -  Por sensacionalismo, para aparecer... porque se julga um ser superior... um Deus. Está me entendendo, Conceição?

CONCEIÇÃO  -  Entendo... entendo... sim, sinhô!

OTTO  -  Você sabe de quem estou falando, não sabe, Conceição?

CONCEIÇÃO  -  Dr. Cyro Valdez!

OTTO  -  Isso mesmo. Cyro Valdez! Esse... esse demônio, Cyro Valdez. Esse feiticeiro... esse desgraçado!

LEVANTANDO-SE, O HOMEM DEU ALGUMAS PASSADAS PELO INTERIOR DO CASEBRE, VERIFICANDO AS MISERÁVEIS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DA MULHER.

CONCEIÇÃO VOLTOU A SEGURAR A MÃO DO HOMEM QUE ODIAVA OS NEGROS E DESPREZAVA OS POBRES.

CONCEIÇÃO  -  Seu Otto... eu num quero que o sinhô morra! Eu num quero!

OTTO  -  Eu não vou morrer! Eu tenho a vida de seu filho batendo aqui dentro de mim... Mas é preciso que aquele demônio morra! Ele não merece continuar vivendo... está me entendendo?

CONCEIÇÃO  -  (como que extasiada) Tô! Tô, sim sinhô.

OTTO MULLER FIXOU AS BRASAS VERMELHAS QUE ARDIAM NO FOGÃO, DANDO À CHOUPANA UM ASPECTO MÍSTICO. A LUZ DO FOGO REFLETIA-SE NO ROSTO TRANSFIGURADO DO ALEMÃO. A CALVÍCIE DAVA-LHE A APARENCIA DE UM SER DO OUTRO MUNDO.

OTTO  -  Instigue os outros. Denuncie o crime de Cyro Valdez. Peça ajuda... fale com todos... reúnam-se contra esse demônio. Expulsem-no daqui... ou o matem! Ande, Conceição, vingue-se! Vingue-se, mulher, ande! É o coração de seu filho, meu irmão negro, quem manda!

A MULHER APANHOU UM XALE E SE ENVOLVEU COM ELE. ESTAVA TRANSTORNADA PELO ACONTECIMENTO E PELA VISÃO DEMONÍACA DO EX-PATRÃO.

CONCEIÇÃO  -  Sim, sinhô... eu tenho ajuda dos mineiros tudo em peso... da Panorama. Tá todo mundo revoltado.

OTTO  -  Aproveite-se dessa revolta... vingue-se!

SEM MAIS CONVERSA, CONCEIÇÃO DEIXOU O CASEBRE, PERDENDO-SE NA ESCURIDÃO DO EXTERIOR. OTTO FICOU. SENTOU-SE NA CADEIRA DE BALANÇO E AGUARDOU

FIM DO CAPÍTULO 70

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