quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O HOMEM QUE DEVE MORRER - Capítulo 75


Novela de Janete Clair

Adaptação de Toni Figueira

CAPÍTULO 75

Participam deste capítulo

Cyro  -  Tarcísio Meira
Mestre Jonas  -  Gilberto Martinho
Rosa  -  Ana Ariel
Prof. Valdez  -  Enio Santos
Conceição  -  Zeni Pereira
Lia  -  Arlete Salles
Dr. Max  -  Álvaro Aguiar
                                         

CENA 1  -  ILHA DOS CARDOS  -  CHOUPANA  -  INTERIOR  -  DIA

HÁ TRÊS DIAS CYRO MAL SE LEVANTAVA DA ESTEIRA LARGA, ESTENDIDA NO CHÃO DURO DA CHOUPANA. A FEBRE ALTA COMEÇAVA A DECLINAR, MAS A PERNA, ENVOLVIDA POR UM PANO BRANCO, DOÍA-LHE MUITO. A BARBA ESPESSA COBRIA-LHE O ROSTO SOFRIDO E O MÉDICO TINHA DIFICULDADE EM MOVIMENTAR-SE, APESAR DE TER, ELE MESMO, PROTEGIDO O FERIMENTO COM SULFA E MERTHIOLATE.

A CABANA DE MADEIRA COM TETO DE SAPÉ ERA USADA RARAMENTE PELOS PESCADORES QUE SE AVENTURAVAM NO MAR ALTO. A UM CANTO A REDE VELHA, CARCOMIDA. VARAS DE PESCA, SAMBURÁS. ERA TUDO O QUE EXISTIA DENTRO DA CHOUPANA, ALÉM DE UM FOGÃO DE BARRO, ALGUMAS PANELAS, PRATOS E GARFOS ENFERRUJADOS E UMA MORINGA, COM ÁGUA FRESCA, RETIRADA DO POÇO.

O MÉDICO MEDITAVA, OLHANDO A LINHA DE LIGAÇÃO DO CÉU COM O MAR, QUANDO UMA VOZ CHEGOU-LHE AOS OUVIDOS.

VOZ  -  Dr. Cyro!

ERA COMO A COMUNICAÇÃO MENTAL DE UM OUTRO MUNDO.
O VENTO SOPRAVA POR ENTRE AS COPAS DAS ÁRVORES.

CYRO  -  (identificou o chamamento) Mestre Jonas!

EM PORTO AZUL, MESTRE JONAS CONCENTRAVA-SE, SENTADO À BEIRA-MAR, COM OS OLHOS FIXOS NO HORIZONTE.

MESTRE JONAS  -  Dr. Cyro, onde está?

CYRO  -  Mestre Jonas... vim para cá... pra fugir de tudo. Aluguei um barco... pedi ao Chico pescador que me levasse para um lugar fora do mundo. Estou aqui há três dias... na Ilha dos Cardos... você sabe onde é. É afastada... mas não tão longe que me dê a paz que preciso. Eu vou encontrá-la, Jonas; vou encontrá-la. Estou em meditação, procurando a explicação de tudo... tem de haver uma explicação... você pode me ajudar, Jonas. Você pode. Chamei porque preciso de você.

CYRO FEZ UM ESFORÇO, APOIANDO-SE NAS MÃOS, PARA LEVANTAR O CORPO E DIRIGIR-SE AO EXTERIOR DA CABANA. SUA FIGURA SILHUETOU-SE NA MOLDURA DA PORTA RÚSTICA. UM DEUS DE BARBA CRESCIDA, CALÇAS RASGADAS E CORPO FERIDO. ENCAMINHOU-SE PARA O MAR, PARA A PRAIA BRANCA. DESENROLOU O PANO, LAVOU-O NAS ÁGUAS CLARAS E COLOCOU ALGAS MARINHAS SOBRE O FERIMENTO FEIO, ARROXEADO. GEMEU COM O ARDOR DO SAL.

CORTA PARA:

CENA 2  -  PORTO AZUL  -  PRAIA BONITA  -  EXTERIOR  -  DIA

MESTRE JONAS PREPAROU O BOTE E ATIROU OS REMOS NO FUNDO DE MADEIRA. ROSA CORREU ATÉ PERTO DO MARIDO.

ROSA  -  Onde tu vai, Jona?

MESTRE JONAS  -  Ao encontro dele. Do Dr. Cyro.

ROSA  -  Já sabe onde ele tá?

MESTRE JONAS  -  Sei.

O PEQUENO BARCO SINGROU AS ONDAS E SE PERDEU NO RUMO DA ILHA DOS CARDOS.

CORTA PARA:


CENA 3  -  ILHA DOS CARDOS  -  EXTERIOR  -  DIA

COM MOVIMENTOS RÁPIDOS DE QUEM VIVERA NO MAR ANOS A FIO, JONAS ATRACOU O BOTE NA PRAIA DE AREIAS CLARAS. OLHOU EM TORNO E DIVISOU A CHOUPANA. MAIS ALÉM, DE PÉ NUMA ROCHA, VOLTADO PARA O NASCENTE, O VULTO DE CYRO VALDEZ RECORTAVA-SE CONTRA O CÉU AZUL.

O PESCADOR APROXIMOU-SE.

CYRO  -  Estava à sua espera.

MESTRE JONAS  -  Esperei seu chamado (abraçou o amigo, visìvelmente emocionado) Sabia que tava precisando de mim. (olhou em volta) Ilha dos Cardos... já pesquei muito aqui.

CYRO  -  (apontou para a cabana) Estou vivendo ali.

MESTRE JONAS  -  Como tá essa perna?

ENTRARAM NA CABANA ABANDONADA.

CYRO  -  Esteve pior... agora já aliviou um pouco, mas a bala está aí dentro... e eu precisava que você estivesse aqui para me ajudar a retirá-la.

CYRO DESATOU O PANO E MOSTROU O FERIMENTO AO VELHO HOMEM DO MAR.

MESTRE JONAS  -  É melhor eu ir buscar um médico.

CYRO  -  Não... não quero médico. Não quero ver ninguém. Você tem uma faca?

JONAS DESEMBAINHOU O AFIADO FACÃO DE PESCA QUE TRAZIA NA CINTURA.

CYRO  -  Acenda o fogo... para desinfetá-lo. Nós vamos fazer esse servicinho.

ENQUANTO JONAS ATIÇAVA O FOGO E FERVIA ÁGUA, CYRO LIMPOU A FERIDA, DESINFETANDO-A COM SULFA EM PÓ.

MESTRE JONAS  -  (examinando a cozinha empoeirada e vazia) Como tem se arrumado sem alimento?

CYRO  -  Eu mesmo tenho pescado... caranguejo é o que não falta por aí. Um homem não morre de fome quando tem dois braços. Não morre de sede. Nem de desespero, quando se descobre que a causa do sofrimento humano é a ignorância. Eu tenho tido muita pena dos homens, Jonas. (fez uma pequena pausa enquanto amolava o facão e o colocava sobre as chamas do braseiro) Estive, algum tempo, na Índia, Jonas... e nestes dias tenho meditado sobre as palavras do meu primeiro mestre. Ele dizia que... estamos sempre ansiando por satisfazer de várias maneiras uma coisa que chamamos eu. Mas não há eu. Somos apenas formações transitórias, cristalizadas pelo fluxo geral de coisas e acontecimentos. Precisamos abandonar essa ilusão de egocentrismo... desejo de satisfação das nossas paixões. Precisamos aprender, por meio da libertação de nosso espírito contra a superstição... por meio de uma austera disciplina de nossa  vontade...  e  por  meio  do amor... a participar do fluxo do mundo... como humilde e discreta parcela dele. Nisso estão a paz e a felicidade perfeitas.

JONAS OUVIA EMBEVECIDO AS PALAVRAS, ENQUANTO CYRO, SENTADO NUM TAMBORETE, RASGAVA A PERNA COM A LÂMINA AMOLADA. FEZ UMA CARETA, SUPORTANDO A DOR VIOLENTA. O SANGUE ESPIRROU E A PONTA DA FACA PENETROU MAIS FUNDO, À PROCURA DO PEDAÇO DE CHUMBO. CYRO SEGUIU FALANDO, E O SUOR COMEÇOU A DESCER DE SEUS CABELOS LONGOS, INFILTRANDO-SE PELA BARBA NEGRA.

CYRO  -  Meu mestre indiano dizia... bem-aventurados os que ganham a vida de maneira a não trazer mal ou perigo a qualquer vivente. Bem-aventurados os tranqüilos, que se despojaram da má vontade, orgulho e falsa convicção, substituindo-os por amor, piedade e compreensão. Bem-aventurados... todos aqueles que dirigem os melhores esforços no sentido de preparação e domínio de si mesmos...

NUM MOVIMENTO DE TORÇÃO, CYRO ARRANCOU A BALA. MOSTROU-A A JONAS. O PESCADOR SEGUROU O CHUMBO.

MESTRE JONAS  -  De tudo o que me disse... quer dizê que já encontrou seu caminho?

CYRO  -  Não... ainda não. Não sei se meu caminho será de Buda... Não sei se é verdade que vim de outro planeta... Não sei se tenho aqui na Terra uma missão a cumprir e que missão é essa. Ainda não recebi a explicação do mistério.  Não sei quem sou. Mas... vou saber, Jonas!

DO BURACO ABERTO PARA A EXTRAÇÃO DA BALA FLUÍA UM FILETE DE SANGUE. O PESCADOR LIMPOU-O E ENROLOU A PERNA DO CIRURGIÃO COM TIRAS DE PANO, RASGADAS PA PRÓPRIA CALÇA.

MESTRE JONAS  -  Eu tenho a minha certeza. Mas seja qual for o mistério... seja qual for a verdade... mesmo que não venha de encontro à minha... eu sou e hei de ser sempre... o seu seguidor.

CYRO SORRIU MELANCOLICAMENTE E ABRAÇOU O AMIGO.

CORTA PARA:

CENA 4  -  ILHA DOS CARDOS  -  EXTERIOR  -  DIA

DOIS DIAS DEPOIS MESTRE JONAS VOLTOU À ILHA DOS CARDOS. MAS NÃO IA SÓ. ACOMPANHAVAM-NO OS ADEPTOS DA FILOSOFIA DA BONDADE, PREGADA PELO MÉDICO DE PORTO AZUL. JONAS LIDEROU-OS PELOS CAMINHOS DO MAR. TRÊS EMBARCAÇÕES APINHADAS DE PESCADORES E MINEIROS HUMILDES.

JONAS GUIOU-OS ATÉ UM TRECHO AMPLO ENTRE A PRAIA O O ROCHEDO ONDE O ENVIADO COSTUMAVA MEDITAR. CYRO RECEBEU-OS COM ALEGRIA.

CYRO  -  Meus amigos... meus irmãos... vocês tiveram o trabalho de vir aqui... ao meu encontro. Quero lhes falar da minha emoção ao ver que vocês confiam em mim, ainda... depois de tudo o que passamos juntos.

DIVISOU ENTRE OS PRESENTES O VELHO PROFESSOR VALDEZ, SEU AVÔ, E CONCEIÇÃO, A NEGRA. OLHARES MÍSTICOS.

CYRO  -  Ainda não chegou o momento de eu voltar. Mas vai chegar.  Estou  procurando  a  minha  Verdade. (olhou para o céu azul, sem nuvens) A explicação de tudo. Seja ela qual for... será no sentido de ajudar. De uma coisa estou certo. Deus me dotou de algum poder... e não foi em vão. Eu recebo humildemente esse favor de Deus. E vou usá-lo em benefício de todos aqueles que precisam. Tentarei, com a permissão DELE, mostrar a todos um caminho justo... um caminho de amor... de paz... de compreensão... de caridade humana.

CORTA PARA:

CENA 5  -  MANSÃO DE OTTO MULLER  -  SALA  -  INTERIOR  -  DIA

LIA MANDOU CHAMAR, COM URGÊNCIA, O DIRETOR DO HOSPITAL E O DR. MAX, DEPOIS DE DEMORADO EXAME, CONVENCEU-SE DA VERDADE.

DR. MAX  -  O estado do Sr. Otto é gravíssimo. Sem o soro, ele morre. Já tinha sido advertido por Dona Dirce. O soro terminou!

LIA  -  E não podemos encontrá-lo?

DR. MAX  -  Trata-se de uma experiência exclusiva do Dr. Cyro. Eu já lhe disse. Só ele poderá salvá-lo!

LIA  -  (tomou a decisão) Eu vou procurar o Dr. Cyro.

DR. MAX  -  Vai trazê-lo aqui? E se o paciente não quiser vê-lo?

LIA  -  Eu não acredito que Otto prefira morrer. No momento em que ele sentir o perigo, mandará chamar o Dr. Cyro, correndo. Sei quem pode me dizer onde ele está. (segurou o médico pela manga do paletó) Diga, doutor: quanto tempo acha que ele pode esperar pelo soro?

DR. MAX  -  Mais ou menos umas 12 horas. O estado irá se agravando a cada hora que passa.

LIA  -  Vou ver o que posso fazer.

DR. MAX  -  Voltarei amanhã cedo.

FIM DO CAPÍTULO 75

                                                

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